quinta-feira, 26 de junho de 2025

O meu canto é o Sertão


Eu sou real o tempo todo. Menos quando penso com palavras.

 

Eu faço séries de farsas e a verdade vem no final do episódio.

 

Com os roedores do boqueirão, aprendi a correr da pólvora.

 

Como o talho da folha do jerimum, tenho um vazio do tamanho da própria abóbora dentro de mim.

 

E quando chove, algo mais do que água cai do céu no sertão.

 

Com as lagartixas, descobri que o rabo cresce de novo. Diferente dos cães e dos gatos.

 

A casa de farinha é a igreja do trabalho em equipe.

 

O engenho e a cor, na dor, não se misturam. Um é sempre doce e o negro ainda amarga.

 

Quilombolas e indígenas me preencheram muito mais do que as casas-grandes.

 

Roubar cera de abelhas é mais legal por elas reporem todos os dias.

 

A mãe da lua era para ter sido minha melhor conselheira, mas falaram muito mal dela pra mim.

 

Com os “doidos” do terreiro de casa tive meus maiores momentos de lucidez. Era pura inocência.

 

Quando pequeno, eu criava latas alimentadas por terra.

 

A paciência que eu tive foi esperar o riacho encher novamente. Até hoje eu aguardo.

 

 

(Cristiano Jerônimo – 26.06.2025)

terça-feira, 24 de junho de 2025

O mangue poético de Cristiano Jerônimo e Lula Côrtes (1994)

 

No aniversário de cinco anos do Flores no Ar, no dia 26 de setembro de 2014, recebemos um lindo presente do jornalista e artista Cristiano Jerônimo. Ele disponibilizou para publicação no nosso site a obra ‘Ribeira de Mar dos Arrecifes’, uma série de poemas criados por ele e ilustrados pelo grande Lula Côrtes. Confiram abaixo como aconteceu a criação da obra e, em seguida, deliciem-se com os poemas e ilustrações!

(Portal Flores no Ar - www.portalfloresnoar.com)

 


Poesia e pintura: Recife em pesquisa e ritmo

| Por Cristiano Jerônimo | 

‘Ribeira de Mar dos Arrecifes’ é um livro lançado em 1999, mas escrito de 1993 a 1996, essencialmente, por se tratar de um livro temático, com a recorrência às referências das mais variadas nuances da capital pernambucana. Vim do sertão morar na capital aos três anos de idade. Naqueles tempos, início da década de 1980, parece que as coisas eram bem mais complicadas do que hoje, do ponto de vista socioeconômico, ambiental e de desigualdades mais visíveis tipo os “dormidores” da rua do Sol, próximo à Rua Nova, por ali pela Ponte de Ferro. O centro do Recife, felizmente, foi ficando menos deprimente pela consciência popular que conheceu mais os nossos direitos e fazem questão de exercê-los. Nas ruas, nas barricadas, para exigir um pouco de respeito e os mínimos direitos, como o à vida.

 

Escrever um livro sobre a minha impressão poética das disparidades, do belo e do feio, de uma cidade muito importante, o Recife, foi uma decisão tomada em 1993, após o lançamento do livro ‘Eu’s no Azul do Infinito’ (Editora Universitária – UFPE). Havia iniciado o curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e estava no primeiro ano. Até hoje acho que o meu primeiro livro foi um fracasso de vendas, mas foi muito mais importante do que isso. Foi o meu primeiro grito suave. Desangustiado. Parido.

 

A Biblioteca Central da UFPE era o meu esconderijo secreto todas as tardes dos dias da semana. Ia nas fichas catalográficas e escolhia o livro que eu ia ler nas bancas de estudo, já que havia me desvinculado do curso de Letras e não podia pegar emprestado, levar para casa. Lembro do livro que mais me chamou a atenção – pode ser até o que mais gostei: ‘Arredores do Recife’, de F. A. Pereira da Costa, um livro que faz um resgate do Recife, do século XVI ao século XX. O autor, por sinal, foi o fundador da Academia Pernambucana de Letras (APL). O que chamo de pesquisa que fiz se estendeu até o Museu da Cidade do Recife, dentro do Forte das Cinco Pontas. Não li João Cabral de Melo Neto, porque sabia que ia ser influenciado. Tenho que admitir. Também estudei Recife e Seus Bairros, Gilberto Ferrez, e um livro sobre a passagem de Charlis Darwin pelo Recife, o qual não lembro o nome do título.

 

No museu, a coleção de fotos, litogravuras seculares, pinturas; é muito vasta. Lá cheguei a conclusão que o Recife central sofreu cinco aterros até chegar à área de continente expandido que apresenta hoje. A destruição de ruas e casarios para a construção da Avenida Guararapes. Uma igreja secular foi derrubada. No Recife Antigo também havia a igreja mais cultuada do local, voltada para os navegantes que chegavam de viagem e aos que embarcavam. Ficava na beira do cais, próximo ao antigo Terminal de Passageiros. Não existem nem mais ruínas.

 

PARCERIA COM LULA CÔRTES – Mas o mais gratificante do que já se tratava de anos é que, ao apresentar todos os poemas para o amigo e parceiro Lula Côrtes, ele pegou da minha mão os originais que eu estava lendo para saber a importante opinião dele sobre o livro, os poemas, e ele  falou de pronto: “Eu vou fazer umas ilustrações iradas para a impressão. Bem diferentes. Deixe comigo”. Meus olhos brilharam, porque estava ali agregado um ser artístico com o qual eu aprendia o tempo inteiro, e com quem eu iria realizar outras parcerias de letras e pinturas. Lula me surpreendeu, então, com dez monotipias (equivalentes a dez poemas que os inspiraram), feitas com desenho de espátulas com nanquim sobre superfície de vidro. Ele desenhava as figuras ao contrário para que quando fosse imprimir, manualmente, num papel que ele mesmo reciclava. Daí, a imagem ficasse em positivo. Os resultados foram maravilhosos. E a textura dos desenhos preto e branco ficou sensacional. Ele me revelou que nunca havia feito essa mistura nem usado essa técnica antes. Não fiquei surpreso com aquela abundante criatividade.

Vamos à arte!

  



recife de rua

vagueia um menino qualquer

qualquer rua…

matuta qualquer menino

vidrado na lua…

 

sobre a cidade

de água indecisa,

sob a verdade

crua e concisa

repousam as asas

da contradição:

do que é da terra de Deus

e que é de um mundo de cão.

 

um rebanho de bichos do mato

…meninos…

…cidade…mata…

…MENINOS…

 




a lama enrustida

atravessar o rio da vida

e a história da vida molhar;

pular de uma ponte comprida

e na lama da vida nadar…

 

compreender a lama o centro

e no centro da roda rodar;

desvirginar o segredo do tempo

e no vento da vida voar…

 

mergulhar no canal de entrada

no bueiro da esquina entrar

e ao sair, na bacia do pina,

pelo dique afora andar…



 

olhem agora

a contracapa do recife,

aquilo que escondem de ti

sob o arregalo dos teus olhos

assustados com os curumins do “mau”

saídos dos esgotos marisíacos de sal…

 

suicídio ao cais

surgia o coletivo

e ele descia.

meio claro chuva,

meio dia.

Absorto entendia

que dobrava uma esquina fria,

até a ponte que subia

a guararapes…

o jornal de ontem,

lia o diário, que esquecia

e atordoado ele seguia…

ele chorava, ele sorria.

cinco minutos

em cada praça

se despedia…

na 1º de março

sem companhia…

prosseguia, ainda,

a marquês de Olinda,

e, jogando-se do cais,

no mar ele morria…

(quantas coisas

o marco zero não presencia…)

 

 

dos mangues

eu sou da terra dos mangues,

dos sangues que cobrem nossos contraditórios asfaltos…

dos grupos que exalam o maracatu lá dos altos.

 

eu sou do lado urbano,

das retas e contornos dos prédios

que presencial ou acabam o tédio

da arquitetura da cara do povo.

 

eu sou do lado rural,

das árvores seculares e florestas vivas,

das cerâmicas da várzea de francisco brennand.

 

 

menina de cais

uma mariposa

de cais,

gás…

aquática

cinemática.

movimentadamente

estática…

uma menina

que vagueia

o cais de zé

mariano, apolo

e santa rita.

presa ao cais

da alfândega

com seios contrabandos,

seu bando:

que bando?

uma prostitutinha

de cabelos de mangue,

uma menina de rua

é a nossa beleza;

brasileira Veneza…

 

 

 

recife: a tua carne

a tua carne é irrigada

pelos canais e rios de lama

além dos arbustos que encobrem

os sóis que refletem a gente.

 

o teu horizonte incerto é curvo

nas retas esquisitas da tua ilha do leite,

a tua ilha do retiro, joana bezerra,

um tiro nos coelhos

tuas ilhas…armadilhas…

são tuas veias dividindo teu tecido,

tua pele de lama, em tua cama me deito.

 

teu horizonte correto é reto

tanto quanto também incerto

e tuas águas, inevitavelmente, correm para o mar

nos corrupios esguios das mágoas que não vamos chorar.

 

teus pássaros turvos

os uivos noturnos

boêmios diurnos

mistérios que me fazem encontrar…

 

atlântida nem Veneza,

recife beleza,

paraíso infernal.

até o galo sai antes da aurora

na hora do carnaval…

 

 

pontes

pontes, por onde andas?

sei que durante tantos anos

não permanecestes parada…

 

ponte, por onde falas?

sei que, apesar de muda,

não te resumes calada…

 

ponte, por onde nadas?

porque, apesar de morar neste rio,

nunca morrestes afogada…

 

ponte, por onde começas?

ponte, por onde terminas?

eu só sei dos ensinamentos

que tua travessia me ensina.

 

satisfação

(a antiga rio branco)

 

que pressa e risos

de um lado a outro das ruas,

das meninas vestidas

que, na verdade, são nuas.

elas vendem beijos e abraços,

pedaços de noite sem emoção.

anseiam, ao passo que abominam

o cansaço das noites condenadas

à prostituição…

talvez sim, talvez não

alguém possa satisfazer mecânica sua falta

e a sua determinação de se vender infeliz,

numa vibe de que qualquer trocado torna alguém mais feliz…

E ela diz: – levando comigo, freguês, seus segredos e ilusões,

Das quais a tua alquimia solitária

Não te traz satisfação,

Levo comigo tanto a maçã quanto o pão!


Ainda que seque, há esperança

            I Tem mais céu no alto da serra Mais estrelas no azul cósmico Douradas num chão estrelado Riscados sobre o branco papel ...