Autores
Aline Ridolfi
Ana Paula Canestrelli
Tatiana K. de Mello Dias
Divulgação
Cristiano Jerônimo
índice
introdução | 6
Ronnie von |10
Liverpool | 24
módulo 1000 | 46
som imaginário | 66
spectrum | 92
udigrudi | 110
vimána | 162
serguei | 182
o fim da história | 210
Louco: Afetado por um alto
grau de independência
intelectual.
Ambrose Bierce, jornalista norte-americano
Psicodélico,
psicodelia, psicodelismo. Muitas palavras para definir o indefinível. Segundo a
alquimia dos signos: “Psico” – alma, espírito, princípio pensante, atividade
mental – mais o elemento ”Delo” – visível, claro, manifesto, evidente. Pelo
dicionário:
aquilo que produz efeitos alucinógenos;
diz-se de qualquer produção intelectual que se assemelha ou procura imitar as
obras criadas sob o efeito de alucinógenos.
A psicodelia brasileira tem um quê de
inenarrável, um quê de indescritível, um quê de mitológica – ora moribunda, ora
extasiada. Mas o ser humano precisa da classificação para organizar suas
idéias. Como disse Jorge Mautner, “A arrumação do cérebro é importante. Nesse
caso, a definição é importantíssima por que mexe com o pensamento. A
classificação é uma tentativa racional de tentar interpretar a emoção que
aquele fenômeno está te despertando. E na profundidade tudo está parado e em
movimento ao mesmo tempo. E na visão intuitiva dessa arte psicodélica você já
tem essa junção. Como arte”.
O psicodelismo contaminou diversas formas
de expressão – na música, a brecha foi aberta pelo relâmpago tropicalista, que
deixou de lado a MPB tradicional na busca por novos sons e roupagens estéticas.
Como reflexos da repressão política e cultural, pipocaram por todo o país
pequenos grupos de jovens preocupados em fazer música, arte livre e, sobretudo,
em garantir liberdade mental suficiente para não enlouquecer de verdade
naqueles anos de chumbo. No entanto, essas bandas quase nunca conseguiram
emergir e permaneceram sufocadas nos subterrâneos da contracultura nacional.
No Nordeste elas carregavam o sotaque
arretado, os instrumentos regionais de percussão e a malandragem jagunça. No
Sudeste traziam as influências estrangeiras libertas pelo idioma nacional. No
Sul uniam detalhes latino-americanos, referências gaudérias e costumes
europeus. Em todos os cantos, representavam o grito de uma geração, que não
aceitou ser amordaçada pelo sistema. “Os desbundados só acreditavam no processo
individual como saída, em busca do revolucionar-se; já os guerrilheiros
reprimiam os sentimentos pessoais, seguindo um rígido manual de conduta que
desvalorizava as questões individuais em prol do coletivo e de uma revolução
social que viria. E o orgasmo ficava para depois da revolução”, escreveu Lucy
Dias, em “Anos 70 – enquanto corria a barca”.
Extraterrestres, drogas ilícitas, cidades
do interior, personagens bizarras, bandas internacionais, lingeries, demônios
maquiavélicos, surtos esquizofrênicos, flores que falam... Tudo era motivo de
inspiração. É a arte livre. A não-imposição de limites. A quebra de tabus em
uma época marcada pela repressão do Estado. O modo de se vestir, de viver, de
compor, de mostrar a arte nas apresentações, tudo era permeado por uma sede de
liberdade – representada pela estética e pelos sons psicodélicos. Enquanto Andy
Warhol e sua trupe viviam desbundados criando pinturas e canções alucinadas,
artistas brasileiros despejavam sua criatividade lisérgica também na produção
nacional. Mas por aqui a loucura era incômoda e a maioria dos músicos
envolvidos nesta fase acabou barrada em gravadoras, ou censurada na hora de
lançar suas obras. A repressão, somada ao caráter conservador da sociedade da
época, acabou relegando muitas bandas ao esquecimento.
introdução | 7
“Vou viver bem
longe, bem perto do infinito
Todos vão dizer
que saí para fugir
E eu vou falar
Que saí para
mudar
Há um novo mundo
lá fora
É só abrir”
(Letra de “É só curtir”, A Bolha, 1970.
Proibida pela censura)
Muito se falou sobre a psicodelia
estrangeira. A era internacional do LSD trouxe à tona faces obscuras de grupos
como os Beatles e os Rolling Stones e revelou nomes como The Doors, Jimi
Hendrix, Pink Floyd, Steppenwolf, entre outros. Mas o Brasil não ficou de fora
do “movimento”: entre o final dos anos 60 e o desenrolar dos 70 vivemos uma
intensa produção artística, especialmente musical. Apesar de extremamente rico,
este é um período pouco conhecido e minimamente explorado, pelo menos até o
momento. Neste livro estão reunidos alguns contos e causos dos mais importantes
nomes da época. Nomes que hoje já não são mais lembrados ou que desviaram a
rota de suas carreiras para outros estilos mais populares.
Não é uma estrada, é uma viagem
Imagine uma sociedade cinzenta. Nessa
sociedade, havia um oásis colorido. Pense em paz, amor,
Woodstock, Monterey, guitarras de Hendrix, tons de Joplin, Greatful Dead, The
Mamas & The Papas, Ravi Shankar, Steppenwolf, Beatles, Rolling Stones. Adicione pitadas de
excentricidade brasileira: batons vermelhos, roupas berrantes, cores. Flores.
Muitas flores. Punhados de lisergia, cogumelos, peiote, LSD, maconha, jurema,
ayhuasca. Cabelos compridos, barbas mal feitas, indomáveis, repressão, Carlos
Castañeda, ditadura, Thimoty Leary. Jeans desbotados, bordados, roupas usadas,
batas indianas, vestidos e saias compridas, tecidos naturais. Cheiro de
Patchouli.
Misture tudo com liberdade em grandes
doses. Muita liberdade. Encha a mão sem medo, pois além de dar gosto, é ela
quem dita o caminho. Aproveite os tão renegados instrumentos elétricos e
combine com batuques e tambores afro, sanfonas, triângulos e o que mais parecer
interessante da cultura tupiniquim. Embarque na levada da Tropicália e siga
sempre rumo à inovação. Contra o arroz e feijão, a macrobiótica. Plantações de
inhames devem vir antes dos enlatados.
Não simplifique! Arranjos em quatro por
quatro não são bons sinais. Ouse, invente, transgrida. Por que não um sete por
três? O impossível não existe. Solos de guitarra, baixo, bateria, flauta,
zabumba ou cítara que passem dos dez minutos levarão o público à loucura. O
negócio não é ser pop, mas sim criar um novo jeito de tocar. Junte todas as
tribos – hippies, cocotas, caretas, desbundados – este último em maior
quantidade. Religiões orientais podem dar um tempero extra. Transcenda-se.
Pense nisso tudo concentrado, feito em
acetato e tomando forma de vinil. Deixe maturando por pelo menos trinta anos,
até uma nova geração resgatar o bololô e exigir explicações para tentar
entender o que saiu dali. As boas histórias são o que valem e as lembranças
dessa época brilhante e colorida ficarão gravadas para sempre. Agora em forma
de livro.
“Não. Não alcançamos a felicidade. Estávamos
provavelmente mais perto dela nas décadas abertamente revolucionárias da
juventude da minha geração, apesar da violência das repressões externas e
internas que então caracterizavam a experiência de estar vivo. Havia um
instinto saudável que exigia a transformação, que queria mudar o mundo e a vida
em todos os níveis. A primeira manifestação desse instinto foi política mas, em
seguida, ela alcançou o comportamento, a postura existencial e a própria dimensão
espiritual da experiência de viver.”
Luís Carlos Maciel, filósofo da
contracultura, no livro “De volta para o futuro”
Day Tripper:
o novo cantar de
Ronnie Von
Ronnie Von era o mocinho ideal para qualquer clichê
cinematográfico. Lindo, moreno, cabelos lisos, olhos claros. Carreira estável,
intérprete de canções românticas, bom moço, apelidado de “Pequeno Príncipe” por
ninguém menos que Hebe Camargo, ele era o sonho de todas as garotas, o genro
que toda mãe pediu a Deus. Mas quando tudo vai bem, assim como, de novo, nos
clichês cinematográficos, a família feliz sempre esconde um segredo cabuloso, e
o monarca em questão escondia uma personalidade inquieta, inovadora, muito além
do rapaz que cantava “Meu bem” ao jogar os cabelos para o lado e o charme para
o público. Esta não é a história de vida de Ronnie. É a história da psicodelia,
ou como prefere o moço – hoje senhor, de sua surrealidade.
“Eu me perdi no
dia a dia
E custei a me
encontrar
Eu era humano e
não sabia
Hoje é tempo de
acordar”
(Trecho de “Eu era humano e não sabia”,
faixa do disco Ronnie Von de 1972)
“Quem determinava o que eu devia gravar era o departamento de
vendas. Você acredita numa barbaridade dessas?” revela Ronaldo Lindenberg Von
Schilgem Cintra Nogueira, o Ronnie Von, sentado ao lado da piscina de sua casa
no Morumbi, 40 anos depois de sua experiência psicodélica. Assim foi comandada
sua carreira artística desde o odiado primeiro disco de 1966, que levava seu
nome.
Criado no seio de uma família rica e tradicional, Ronnie passou a
infância e juventude no Rio de Janeiro, onde nasceu. Divertia-se lendo as
tirinhas do Flash Gordon que seu pai, recortava do jornal O Globo e remontava
em uma pasta. Já adolescente, tornou-se aviador pela concorrida Escola
Preparatória de Cadetes do Ar de Barbacena; depois, entrou na faculdade de
economia. Na música, gostava das novidades que seu pai, diplomata, lhe trazia
do exterior – principalmente Beatles.
Ronnie gostava de cantar; e foi descoberto por João Araújo em uma
apresentação no Beco das Garrafas, reduto tradicional da MPB carioca. Aos 21
anos, lançou a bomba à família: iria a São Paulo tentar a vida como cantor. Foi
um escândalo – na época, Ronnie já dirigia os negócios da família. O pai, em
desespero, chegou a dizer “por que você não vai ser jogador de futebol? O nível
intelectual é o mesmo”. Sem lenço nem documento, Ronnie veio à São Paulo e se
instalou em um hotel simples na praça Júlio Mesquita. As dificuldades duraram
pouco tempo: aos 22 anos, lançou dois fenômenos seguidos: o disco “Meu bem”,
com o hit homônimo – uma versão de “Girl” da dupla Lennon e McCartney, e o
seguinte, chamado “O novo ídolo”, com a antológica “A praça”, de Carlos
Imperial.
Com LPs comerciais e hits sem grandes pretensões, Ronnie traçava
um começo de sucesso. Em 1967, veio “O pequeno mundo de Ronnie Von”, que
consolidava seu sucesso com as garotas de oito a oitenta anos. Ele era um
superstar da época, não saía nas ruas sem um pedido de autógrafo. Tinha um
futuro de sucesso... ou não? No mesmo ano, em novembro, foi lançado Ronnie Von
3, disco que começou, timidamente, a inovar a sonoridade e contou com a
participação de Caetano Veloso e dos Mutantes, já companheiros musicais por
conta de “O pequeno mundo”.
Se o número três abriu caminho, o próximo disco rompeu bruscamente
a trajetória do músico. Ronnie Von, lançado no finalzinho de 1968, era
experimental, com letras subjetivas, referências até então desconhecidas. Quase
um Sgt. Peppers à brasileira, talvez o primeiro disco abertamente influenciado
pela psicodelia estrangeira. A capa, ultralisérgica, reúne desenhos abstratos,
coloridos, e uma foto agressiva de Ronnie, de calças pretas, sem camisa. Desta
vez não havia sido o departamento comercial da gravadora o autor da façanha.
Ronnie von | 13
Foi uma oportuna brecha no comando da gravadora Philips que
possibilitou a experiência psicodélica. O novo presidente, André Midani,
executivo musical internacional, estava vindo dos EUA ao Brasil, mas teve um
imprevisto e demorou mais que o esperado. Ronnie tinha um contrato a cumprir e
um disco para lançar e, com a ideia de fazer uma coisa completamente diferente
do que havia feito até ali, o incontestável fã dos Beatles resolveu ser ele
mesmo. Com a oportunidade em mãos de gravar o que realmente gostaria de cantar,
Ronnie convocou alguns amigos, músicos, além dos tradicionais que já o
acompanhavam em seu programa na TV Record e partiu num voo cego, uma nova
empreitada, sem saber como isso seria recebido pelo público e pela crítica.
O cantor havia acabado de voltar dos Estados Unidos, onde se
encantou com bandas undergrounds como Frozen Frog e Strawberry Alarm Clock,
totalmente desconhecidas por aqui: “aquela música me envolveu e eu já estava
com problemas de autoafirmação, fazendo uma coisa que não queria, as pessoas
imaginando que eu fosse uma coisa que eu não era, eu era outra. Era
desesperador. Era de não conseguir me olhar no espelho, e as pessoas ‘Não,
Jovem Guarda’, ‘Não, romântico’, ‘Não, brega’; Em meio â crise existencial do
Príncipe, surge então Ronnie Von, disco de 1968, o primeiro da trilogia que
contaria ainda com A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre contra o Império
do Nuncamais (1969) e Máquina Voadora (1970).
* * *
,“Olha, eu não sei
de onde venho nem pra onde vou,
Ninguém me
escuta, eu nem sei quem sou,
Eu procurei meu
caminho no vento mas ele não soprou,
(...)Doa a quem
doer, então eu vou cantar,
Meu canto é
vencer, meu canto... é pra mudar”
(Trecho de “Meu novo cantar”, primeira
faixa do disco Ronnie Von de 1968)
Ronnie chegou para Arnaldo Saccomani, um músico de bar que
tornou-se um de seus compositores favoritos, e disse “ó, não gosto de nada que
eu tô fazendo, tá uma barra, então Arnaldo, vamos fazer um projeto alternativo
aí”. Foram então para a Rua Dona Veridiana, Santa Cecília, no estúdio Scatena e
começaram a compor. Saccomani ocupava-se com as letras das canções, Damiano
Cozella, maestro parceiro de Rogério Duprat – que naquela época era mentor dos
tropicalistas -, cuidava dos arranjos. Os músicos faziam a sua parte em meio à
loucura dos resultados. Uma verdadeira máquina psicodélica em prol de um novo
homem.
Apesar de não embarcar nas pirações do desbunde, o careta
Sacommani foi fundo nas viagens musicais e evocou super-heróis e terras
inventadas e até o nonsense, com influências da poesia concreta em suas letras.
“Ás vezes não tinham muito significado, era mais um jogo de palavras, e de
rimas. Não queríamos ter uma historinha na letra, partimos pra ter frases
fortes. Uma coisa mais estética”, explica o letrista.
O processo de seleção das músicas para o álbum começava mesmo na
mansão de Ronnie, onde baldes e baldes de fitas chegavam todos os dias. “Teve
uma época em que ensaiávamos sempre na casa dele, mas só ficávamos num
quartinho para tocar e poucas vezes entramos na casa mesmo. Numa dessas, fomos
ouvir algumas das fitas que ele recebia aos montes. Era assim que funcionava:
ele escolhia as músicas, já pensando no disco, e levava para nós trabalharmos
em cima disso”, lembra Viucelli Marcio de Mattos, o Marcito, baterista do grupo
que acompanhava o cantor na época.
Formada por músicos jovens e até adolescentes, a B-612 – cujo
nome, aliás, foi inspirado no asteróide em que o Pequeno Príncipe de
Saint-Exupéry vivia – deu as primeiras caras e tons do LP surrealista de 68,
como conta o desbundado guitarrista Zé Guilherme, ou, para os íntimos, “Crazy
Joe”: “eu meti a mão naquilo lá e comecei a enfiar guitarra, porque eu era fã
de Hendrix e de tudo que tava na ponta do ácido”. O resultado foram as
ultradistorções do instrumento de Zé, que também se aventurava com alguns
improvisos como o uso de um plástico entre as cordas, para fazer o som de banjo
na gravação de “Bar Íris”.
A faixa “Bar Íris”, inclusive, era o oposto do que o bom mocismo
pedia. Na “Augusta, quase esquina com Jaú”, havia um bar muito aquém dos
padrões ricos dos Jardins paulistanos. “Era uma coisa horrível, aqueles ovos
coloridos, aquelas sardinhas com o rabo torto na vitrine, cachaça de tudo
quanto é jeito, o bar todo vomitado, uma coisa pavorosa. O Damiano Cozella
passou por lá e disse ‘eu vou fazer um jingle disso aí, que é uma maravilha’.
Quando o disco saiu, o bar já não existia mais”, lembra Ronnie.
Damiano Cozzela foi o diretor das gravações e, de acordo com Von,
o gênio que criou todos os arranjos do disco. Maestro inovador, pegou o rock
cru e misturou a uma orquestra, metais, falas, sons estranhos e silêncios
providenciais, em um dos melhores arranjos psicodélicos da discografia
nacional. Ronnie, mesmo, participou muito pouco da arregimentação e produção do
disco – em algumas faixas, com a música já pronta, ele ia ao estúdio e gravava
a voz. Hoje, acha que deveria ter cantado melhor.
* * *
“O Ontem não
existe,
no amanhã depois
eu penso,
o hoje é tudo,
enfim...
pra você e pra
mim...”
(Trecho de “Chega de Tudo”, canção do disco
Ronnie Von de 1968)
Depois de delicadamente preparado no Scatena, o disco “Ronnie Von”
chegou às lojas em 1968 – e seu sucesso foi inversamente proporcional às horas
dedicadas em estúdio.
As milhares de fãs, que outrora tinham que ser contidas por
seguranças, torceram o nariz. Aquilo tinha sido demais. Os poucos que compraram
o disco eram colecionadores curiosos ou admiradores incondicionais que
entenderam que “aquilo era um arroubo intelectualóide”, como Ronnie define. Na
mídia, o fracasso retumbou. À época do lançamento, apenas dois jornais –
“malucos”, diria o cantor - deram aval positivo à pérola psicodélica. O Jornal
do Brasil, no Rio, com a manchete “A que veio Ronnie Von” e o Estado de S.
Paulo, com duas páginas sob o título “Ronnie, esse desconhecido”. O resto
“descia o pau”. “Eu me senti, assim, um ladrão da gravadora. ‘Pegou o dinheiro
e jogou fora’. Eu era profundamente perseguido por muita gente, era uma coisa
sistemática. Tinha um jornalista, não me lembro o nome, que escrevia vinte
notícias: dezenove de futebol e uma era sempre ‘Ronnie Von é homossexual’,
‘Ronnie Von é ladrão’, ‘Ronnie Von é não sei o que’”, desabafa. E o fracasso
refletiu na auto-estima já abalada do não mais “Pequeno Príncipe”.
A resposta veio aos poucos, em uma série de pequenos rompimentos.
Ronnie já estava de cansado de ser chamado de bom moço, príncipe, filhinho de
papai e outros nomes “inconfessáveis” por conta de sua origem e aparência. Na
época, ele usava cabelos longos e lisos, e uma enorme franja caída na cara.
Duvidoso hoje, mas então fez tanto sucesso que até os garotos do B-652 copiaram
o visual, inclusive com ferro de passar para dar ao cabelo o aspecto lisíssimo.
Tudo o que Ronnie fazia, afinal, era alvo de críticas. Em uma época, o músico usava
um paletó xadrez – e usava muito - até que, em uma coluna social, seu visual
foi criticado: “Ele não tira o paletó xadrez”. Irritado, resolveu renovar o
guarda roupa e pensou: “perfeitamente, agora não vão ter o que dizer, porque
vou me vestir só de preto, tudo preto, gravata preta, camisa preta, calça
preta, cueca preta, tudo preto”. E foi assim, por um bom tempo, até que
esquecessem de comentar os trajes do ex-Príncipe.
Toda essa rejeição trouxe mudanças não só musicais, mas também
comportamentais. Bom moço? Não naquele momento. “Você imagina o seguinte, um
aviador, piloto de caça, ex-corredor de automóvel, que gosta de velocidade, que
gosta de outro tipo de coisa, de
repente passa a ser chamado de um monte de nomes, porque tinha
cabelo grande... De repente não era nada daquilo, era uma pessoa normal, uma
pessoa comum, um jovem como qualquer um na minha época”, relata. E a época em
questão trazia o apogeu das drogas lisérgicas, Woodstock, a contracultura,
repressão e tudo mais. No final da década de 60, início da década de 70,
período em que começaram e floresceram as gravações psicodélicas de Ronnie, a
liberdade era o mote da juventude. Os Beatles inovaram com Sgt Pepper’s Lonely
Hearts Club Band e bradavam “Lucy in the Sky with Diamonds”, uma referência ao
LSD discutida até hoje. Tudo isso foi absorvido direta ou indiretamente pelo
nosso rebelde incompreendido.
* * *
Apesar da rebeldia ele nunca deixou de ser careta. A viagem foi
mesmo só musical – pelo menos, da parte dele e de Arnaldo Saccomani. Os garotos
da B-612, não – Zé Guilherme era conhecido como “Zé louco”, por suas
experiências canábicas e lisérgicas. A curiosidade existia, tanto que um dia
foi assistir a uma experiência feita com LSD em um amigo publicitário.
Assistido por psicólogos, o cobaia teve uma bad trip homérica que Ronnie narra
com pavor: “ele estava ligado ao Timothy Leary, achando aquilo maravilhoso,
resolveu fazer a experiência, conseguiu LSD, chamou vários amigos, inclusive
eu, e foi fazer uma viagem e eu vi o que aconteceu com ele. Ninguém me contou.
Ele gritava que estavam saindo morcegos da parede, que estava escorrendo sangue
do teto caindo em cima dele, saía gritando, batendo com a cabeça na parede,
todo mundo segurando. Uma coisa pavorosa. Ele teve depois disso flashes no meio
do caminho, e me contou que uma vez teve dirigindo”. Mas nem puxava um fuminho?
Nada – para ele, maconha, assim como fazer uma tatuagem, era “coisa de
bandido”. Cocaína, então, nem conhecia. A única substância que alterava a
percepção da realidade de Ronnie era mesmo o uísque, mas de leve – ele enjoava
e parava de beber cedo, acudindo os amigos que permaneciam na bebedeira.
Mesmo com a reviravolta em sua carreira, Ronnie Von avisa: “Nunca
fui underground”. Ele chegou a freqüentar bares e casas alternativas em Nova
York, mas no Brasil, não. “Desconhecia literalmente”, como o próprio diz, as
bandas underground daqui, que também começavam a enveredar pela psicodelia.
Ele, além de não ter tempo - era apresentador de TV e cantor -, também não
conseguia sair na rua. Apesar do fracasso de vendas, a figura construída por
trabalhos anteriores nunca foi abalada de fato. As pessoas questionavam, mas
nem por isso deixavam de persegui-lo nas ruas. As fãs não perdoavam um deslize.
Por onde andava, Ronnie era aclamado por moças histéricas – mesmo vestido de
preto e lançando discos estranhos.
Durante uma turnê, em São Luís do Maranhão, Ronnie e os B-612
tocaram para seis mil pessoas. O sistema de segurança eram os guardas locais
que, na metade do show, sumiram. “Nós ficamos de bobeira, totalmente expostos.
Nem conseguimos terminar o show, de tanta gente tumultuando e tentando
agarrar”, lembra o baterista Marcito. Mas o show em questão nada tinha com a
apresentação das novas músicas de Ronnie. O cantor afirma que nunca subiram no
palco e tocaram as faixas psicodélicas. Somente “Silvia, 20 horas, domingo”,
mais palatável ao gosto das massas, foi apresentada poucas vezes. Não havia
turnês de lançamento – o disco era colocado no mercado com um coquetel e uma
apresentação para os lojistas, apenas.
Nessa fase Ronnie também já era apresentador da TV Record desde
66, onde comandava “O Pequeno Mundo de Ronnie Von”, criado para fazer frente à
Jovem Guarda. “Quem fizesse o meu programa jamais pisaria no palco do Jovem
Guarda, que era a referência do programa de juventude da época. Então ninguém
queria correr esse risco, mas tinha a Ritinha, o Sérgio e o Arnaldo”. Na falta
de outras atrações, “O Pequeno Mundo de Ronnie Von” passou a receber
freqüentemente o trio psicodélico, que ainda não havia estourado. “A primeira
vez que fui aplaudido de pé na minha vida foi quando cantei com os Mutantes,
fomos ovacionados, o programa teve uma audiência monumental”, lembra o
Príncipe.
Mais tarde surgiu “Ronnie Especial”, considerado pelo apresentador
o melhor de todos os seus programas. “Tínhamos uma equipe muito competente: um
hoje é autor de novela, o Manoel Carlos, outro é o Tuta, dono da Joven Pan, e o
outro é o Nilton Travesso, que ainda continua na área”, conta Ronnie. “Eles
conseguiram me gravar dentro de um avião de 1939, eu voando mesmo e eles
correndo com uma câmera de oitenta quilos, com 250 metros de cabo, no teto de
uma Chevrolet Veraneio. Todos eles correndo, enquanto eu decolava, para todo
mundo ver que aquilo era de verdade. Quando eu pouso tem um padre correndo com
toda a guarnição da aeronáutica atrás dele, ‘Pega! Pega!’. O padre era o Jô
Soares. Aí, eu entrava cantando ‘Help’. É surrealista? Não sei, mas é muito
criativo”.
* * *
Depois de lançado Ronnie Von, em 1968, Ronnie dedicou três anos à
psicodelia – diluída, gradualmente, nos sucessos que culminariam tempos depois
em “Cachoeira” de mais um de seus discos homônimos, lançado em 1984, clássico
da música brega nacional. Com o comando da gravadora de volta às rédeas, o
momentâneo ex-Pequeno Príncipe teve que minimizar sua psicodelia. Seu
experimentalismo era considerado “fora de hora”, além-Tropicália, mas mesmo
assim relevante o suficiente para não ser descartado. André Midani, o
presidente da Philips, pediu para “pegar leve”. “Ele contratou um produtor pra
conversar comigo, pra diminuir um pouco esse ritmo da maluquice toda e tal, e
eu diminuí mais ou menos”, conta Ronnie.
Em 1969 lançou A misteriosa luta do reino de Parassempre contra o
império de Nuncamais. O título, inspirado na infância do músico, e a capa, uma
ilustração detalhista, não negam a influência psicodélica. Nem o título da
primeira música: “De como meu herói Flash Gordon irá levar-me de volta a Alfa
Centauro, meu verdadeiro lar”. Mas, musicalmente, o disco veio bem mais pé no
chão – “Flash Gordon” é uma música simples -, até por conta de crises de
criatividade. Arnaldo Saccomani admite que houve uma certa falta de
originalidade. “O primeiro LP foi a base de tudo, mas no segundo foi algo meio
‘nós temos que continuar sendo diferentes’. Enquanto que no primeiro disco
tinha sido uma necessidade musical e trabalhamos com a nossa intuição, no
segundo já tentamos seguir a mesma linha, arranjando tema”.
Com um visual bem menos psicodélico, em abril de 1970 Ronnie lança
A máquina voadora. A capa, uma foto sexy que exalta os belos traços e olhos
verdes do rapaz já escancara a volta aos braços das fãs. O disco não nega as
origens rock´n roll, com canções como “Viva o chopp escuro”, mas se concentra
nas canções românticas. Repaginadas e com um toque psicodélico, claro, mas já
bem dissolvidas no que viria depois.
Gradativamente, Ronnie Von voltou a ser o que era, mas com “mais
credibilidade e dignidade”. Se antes o astro era visto como comercial e
simplório, depois do surto conceitualmente lisérgico ele foi reconhecido como
popular, sim, mas também antenado
na vanguarda. Passaram-se os anos e o que encalhava nas
prateleiras começou a ser disputado a tapa por colecionadores. Os discos da
trilogia, especialmente o de 1968, são considerados relíquias da música
brasileira e ganharam status de lenda – especialmente por todo o contexto em
que foram produzidos. Quase quarenta anos depois de lançados, com a
popularização dos downloads, houve um súbito sucesso – Ronnie passou a ser
objeto de culto não só nos colecionadores antenados na psicodelia nacional, mas
também, entre a molecada. Em 2007, a gravadora Universal, que herdou o acervo
da Philips, aproveitou o entusiasmo para lançar um box com o disco de 1968 –
inexplicavemente, com a faixa “Bar Íris” suprimida - e, para tristeza de
Ronnie, com o odiado primeiro disco. No mesmo ano, Ronnie ganhou um tributo
musical e foi regravado por várias bandas independentes, na coletânea virtual
“Tudo de novo”, organizada pela jornalista Flávia Durante, que explica como foi
o processo: “A idéia surgiu na comunidade sobre o cantor que criei no Orkut em
2004. Selecionei as bandas, cobrei a entrega dos prazos, revisei os textos,
separei os contatos, procurei um servidor gratuito, implorei aos amigos por um
design na brodagem... Por isso demorou tanto pra sair. O site Recife Rock
ofereceu a hospedagem e o belo design foi feito pelo gaúcho Gabriel Von Doscht,
que também participa do tributo com a banda Os Vilsos”. Hoje, triunfante – e
cansado, de tanto dar entrevistas para a mídia abruptamente interessada em sua
fase psicodélica -, ele diz: “a importância desses discos é que eu consegui me
vingar de todo mundo”.
,
SUCESSO
Rio de Janeiro, início da década de 70. A Praça Nossa Senhora da
Paz, em Ipanema, estava lotada por uma multidão em polvorosa, com todos os
olhares voltados para uma única direção: um palco, de onde cinco marmanjos
cabeludos, com 20 anos de idade mal completados, comandavam um verdadeiro
espetáculo. O som que saía das caixas e arrebatava o público pelos ouvidos
tinha uma personalidade própria – era criativo e tecnicamente rebuscado, algo
entre um rock’n’roll atrevido e o tropicalismo pulsante, acompanhado por letras
que cantavam sobre o sucesso, lírios, planadores e impressões digitais.
Autenticamente psicodélico.
De repente, um delegado aparece e manda parar tudo porque ali só
tinha maconheiro; a apresentação acabou sendo interrompida, apesar dos
protestos do povo indignado. Cazuza estava lá e este foi o show que mudou sua
vida, conforme ele mesmo teria dito ao guitarrista-base do quinteto, tempos
mais tarde. “Ele falou pra mim que, quando viu a gente tocar ali, decidiu que
era isso o que queria fazer”, lembra hoje o músico cinqüentão, que naquela
época provavelmente não tinha a menor idéia de que sua banda estava prestes a
parir um novo gênero musical: o rock gaúcho.
Em alta
fidelidade,
Eu vejo você,
Você nem ouviu,
O meu novo LP,
Estéreo, estéreo,
Sou Planador,
Aéreo
(Trecho de “Planador”, do disco Por Favor
Sucesso, de 1969)
Os tais marmanjos cabeludos que deslumbraram Cazuza naquele dia
eram Fughetti Luz, Pekos, Edinho Espíndola e seus primos, os irmãos Marcos e
Mimi Lessa. Juntos eles formavam o Liverpool, grupo que tinha suas raízes
encravadas em Porto Alegre, mais precisamente no bairro operário do IAPI, na
zona norte da cidade: “Era um bairro feito pelo Getúlio Vargas, parecia uma
coisa inglesa. Super dividido, arrumadinho, campo de futebol, sede de clube,
árvores, tudo organizado”, lembra Mimi, o caçula, que na verdade se chama Milton.
Filhos de um alfaiate que adorava cantar, netos de um compositor e sobrinhos de
um músico profissional que tocava cavaquinho, ele e Marcos cresceram encantados
com as serenatas que rolavam na sala de casa e começaram logo cedo na música.
Aos 12 anos de idade, Mimi já ganhava seu primeiro dinheiro dando aulas de
pífaro – um tipo de flauta – para os colegas de escola. Adolescentes, tocavam
juntos na banda The Best: “Daí para fazer o Liverpool foi um pulo. Houve uma
passeata muito famosa em São Paulo da MPB contra a guitarra e aquilo despertou
a gente. A gente tocava violão e, quando veio a guitarra, queríamos ter uma”,
conta Marcos.
O começo do Liverpool no
bairro do IAPI, em Porto Alegre
Quando o The Best acabou, em meados da década de 60, Mimi foi
convidado a tocar em outros dois grupos: “Um me oferecia guitarra Fender, não
sei o quê, e o outro me oferecia fazer o que eu queria”. Ficou com o segundo, o
tal do Liverpool, mas com a condição de levar consigo o crooner Marco Antonio
Luz, seu vizinho de rua. Vítima de paralisia infantil, o garoto era conhecido
como Fughetti e havia acompanhado Mimi em um festival, na época em que já
“metia a cara e queria estar onde havia música”, como diria, anos mais tarde,
em depoimento ao livro Fughetti Luz - O rock gaúcho, de Gilmar Eitelvein. “Ele
tinha dificuldade de cantar numa banda porque tinha uma deficiência física,
então os caras não davam oportunidade pra ele. Ainda mais em Porto Alegre, uma
cidade onde louco é muito louco e careta é muito careta”, explica Mimi, que não
demorou muito para tomar o Liverpool para si: seu irmão logo entrou na
brincadeira e os integrantes originais, enrascados em problemas com drogas,
foram expulsos para dar lugar ao primo Edinho e ao amigo Vilmar Santana, o
Pekos.
* * *
Descobrir o rock não era tarefa das mais fáceis naqueles tempos e
Porto Alegre, apesar de capital, ainda era provinciana. Os discos
internacionais chegavam lá mais atrasados do que no Rio de Janeiro ou São
Paulo, então o jeito era conhecer alguém que trouxesse os LPs direto do
exterior. “A gente escutava ‘Olha, fulano de tal toca um monte de Led Zeppelin,
vamos na casa dele’, e íamos na casa do cara pra ouvir o vinil do Led Zeppelin.
Traziam de fora e a gente corria nas casas das pessoas pra saber, ‘olha o que saiu,
o Emerson Lake and Palmer, progressivo, ritmo composto’, aquilo foi
enlouquecedor”, lembra o mais novo dos irmãos Lessa. Com o rock’n’roll ainda
embrionário no Rio Grande do Sul, sem espaço nenhum na televisão ou no rádio,
bandas como o Liverpool acabavam apresentando seus covers de Cream, The Who,
Beatles, Rolling Stones e The Birds, entre outros, nos clubes e bailes da cena
underground.
Com Fughetti nos vocais, Edinho na bateria, Pekos no baixo, Mimi
na guitarra e Marcos na guitarra-base, todos ainda adolescentes, o grupo
mergulhou num circuito incansável de festas e domingueiras que apresentavam
quatro ou cinco atrações seguidas, sendo que cada uma delas, por sua vez,
passava por vários locais diferentes na mesma noite. “A cidade toda entrou num
clima assim, era quase uma competição saudável entre a moçada. Tinha um
mercadinho, você ficava tocando, dava um dinheirinho. Isso ainda na época do
sonho, achava que lá era a Califórnia!”, conta Mimi. Para se diferenciar dos
outros, o Liverpool incluiu em seu repertório canções brasileiras,
principalmente as tropicalistas. No livro de Gilmar Eitelvein, Fughetti afirma
que gravava Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Edu Lobo direto
da transmissão dos grandes festivais na televisão. No dia seguinte, já ensaiava
com os companheiros as músicas na língua materna, enquanto o resto dos jovens
preferia as letras em inglês: “Lutei pra cantar em brasileiro (sic) quando
queriam que eu cantasse em inglês música de outros. (...) Eu procurei fazer a
minha parte, descobrir como se faz rock’n’roll em brasileiro usando nossas
gírias, nossas palavras”.
O Liverpool passou a lotar bailes e festas toda semana com
arranjos próprios criados para os sucessos do tropicalismo, sempre trazendo
alguma novidade para agradar ao público cada vez mais fiel. E foi nesse momento
que a banda decolou de vez: a espontaneidade com que tocavam em cima do palco,
as batidas dançantes e sua característica levada tupiniquim rapidamente
garantiram a conquista de um espaço cativo na cena da contracultura gaúcha. “A
ascensão do Liverpool foi meteórica, em 68 já era uma banda muito conhecida em
Porto Alegre. A gente tocava na televisão num programa de sábado [o GR Show,
apresentado por Glênio Reis no canal 12] e também no interior do estado”, recorda
Marcos Lessa. A primeira grande consagração dos garotos veio com a vitória no
II Festival Universitário de Música Popular, em que apresentaram “Por favor
sucesso”, escrita por Carlos Hartlieb. O prêmio? Participar do IV Festival
Internacional da Canção, no Rio de Janeiro.
Procurei você
pelo mapa da cidade,
Perguntei seu
nome.
E quilômetros
depois eu te perdi.
Por favor,
Estou muito
assustado,
Com você
Ouça essa nova
música,
Música aaaaaa.
Que será sucesso
durante um mês.
(Trecho de “Por favor sucesso”, do disco de
mesmo nome, de 1969)
“Foi a maior vaia que tomei na minha vida”, afirma Marcos sobre o
show no ginásio do Maracanãzinho, o primeiro que o Liverpool faria longe dos
palcos gaúchos, já em 1969. Apesar da recepção negativa do público, a sonoridade
original de “Por favor sucesso” se destacou no FIC e o grupo foi convidado pelo
selo Equipe para gravar seu primeiro LP. Este foi o momento em que, motivados
pela composição de Hartlieb, os meninos sentiram definitivamente a necessidade
de largar os covers e fazer suas próprias músicas. Com a mesma fusão de
influências tropicalistas e roqueiras de antes, as pirações e viagens musicais
que recheariam o disco começaram em Porto Alegre, numa casa de madeira alugada
na periferia, no bairro Sarandi: “Era uma bagunça, uma loucura, não tinha nada
lá dentro. A gente só ia lá pra ensaiar, fazer sacanagem com as meninas e
compor nossos trabalhos autorais”, conta o guitarrista, que era o principal
arranjador da banda.
O cantor, por sua vez, assumia também o papel de compositor e
escrevia a maior parte das letras, enquanto os outros integrantes se
concentravam mais na harmonia de seus instrumentos. Em geral, no entanto, as
criações eram resultado de um trabalho conjunto
de todo o grupo, já em sintonia com o estilo barroco que marcou o
movimento do psicodelismo na música universal. Segundo Mimi Lessa, a ligação
deles com as outras bandas psicodélicas da época estava na forma de compor as
canções: da construção da introdução até as pontes, o formato, o acabamento,
tudo era pensado nos mínimos detalhes, como se fossem verdadeiras obras. Para
Fughetti, as diferenças de gostos entre eles foram essenciais para a riqueza
musical do repertório: “Mimi era mais MPB, eu mais rock’n’roll, Edinho e Marcos
mais jazzistas, (...) era uma soma”, comenta o vocalista no livro de Eitelvein.
Do refúgio no Sarandi, os jovens músicos seguiram direto para os
estúdios do Rio de Janeiro, finalmente saindo de baixo da barra das saias de
suas mães para viverem sob as asas da gravadora, num condomínio na Barra da
Tijuca: “Na época eles apadrinhavam, eram mãezona, te pagavam hospedagem, te
botavam num apartamento pra você morar, pagavam diária pra você comer,
colocavam você nos festivais, levavam maestro”, explica Mimi. “A gente era
moleque e eu nem sabia quanto era a conta da Light, porque sempre tinha um
empresário que pagava. Não era o meu departamento, eu não tinha que cuidar
disso. Era muito bom, muito feliz. Só música, saca, e loucura”.
Olhai, olhai,
Os lírios dos
campos,
Olhai, olhai,
Vossos filhos
tombando no asfalto.
Olhai, olhai,
A vitrina, menina
dos olhos,
Olhai...
(Trecho de “Olhai os lírios do campo”, do
disco Por Favor Sucesso, de 1969)
O primeiro disco do Liverpool, Por Favor Sucesso, foi lançado em
1969 pelo selo Equipe, com músicas dos amigos Carlos Hartlieb, Laís Marques e
Hermes Aquino, além de criações próprias do grupo – “as mais ingênuas são as
nossas”, comenta Edinho Espíndola. O jornalista, produtor musical e fanático
por pérolas do psicodelismo brasileiro Fernando Rosa, mais conhecido como
Senhor F, escreveu na revista Show Bizz que o LP “reúne um conjunto de ótimas
composições, com instrumental acima da média e letras inteligentes e
expressivas do cotidiano da juventude da época. Destacam-se (...) as
ultra-psicodélicas ‘Olhai os lírios do campo’, ‘Impressões digitais’ e
‘Voando’, todas com um impressionante trabalho de guitarra – com distorção no
talo e harmonias rebuscadas”. Para ele, o grupo que transitava “na fronteira do
tropicalismo com a psicodelia universal” contava com “um dos mais importantes e
menos valorizados guitarristas do rock nacional”; influenciado por Santana,
Mimi Lessa era, na avaliação de Senhor F, “da estirpe de Lanny Gordin e Sérgio
Dias, (...) brilhante no disco e mais ainda nos memoráveis e, digamos, coloridos
shows que a banda promoveu”.
Terminadas as gravações, o Liverpool invadiu as noites cariocas
como uma novidade incômoda para as alas mais tradicionais da MPB. “Tocamos na
Sucata, na Lagoa, onde só faziam shows artistas consagrados, mas eles tinham um
certo preconceito com guitarra e cabeludo”, conta o baterista Edinho. As
ousadias sonoras de Mimi definitivamente não passavam desapercebidas naquela
cena: “Os caras da MPB nos achavam uns babacas, mas eles eram caretas pra
gente. Pô, o Milton Nascimento... eu me lembro dele tocando viola antes do
nosso show, tomando um litro de conhaque, bêbado. E eu que era careta. A Elis
era maravilhosa, mas era uma careta, a gente não se identificava com aquilo”,
explica o guitarrista. Seja como cabeludos viados ou alienados políticos, os
meninos gaúchos encontraram-se imediatamente deslocados no início de suas
carreiras longe de casa; como diz o caçula dos irmãos Lessa, “não era fácil
usar aquele cabelo”.
Apesar das dificuldades de se fazer um rock’n’roll original no Brasil
no começo dos anos 70, o Liverpool alcançaria seu auge impulsionado por outros
projetos que seguiram o lançamento de Por Favor Sucesso. Ainda bancados pela
Equipe, eles foram os responsáveis por toda a trilha sonora do filme Marcelo
Zona Sul, um cult da época. Logo depois, foram convidados a participar em Porto
Alegre do Som Livre Exportação, um programa da Rede Globo que reunia artistas
como Ivan Lins, Gonzaguinha, Elis Regina, Som Imaginário e César Costa Filho,
entre outros. “Era a nata da música brasileira e a gente arrasou”, afirma
Marcos Lessa. O sucesso da apresentação no Rio Grande do Sul resultou num
contrato fixo, ou seja, em uma exposição constante na televisão que acabou por
projetar a banda num cenário nacional. No livro Fughetti Luz – O rock gaúcho,
Gilmar Eitelvein escreveu sobre a atuação no programa: “Os músicos viajaram por
todo o país, ampliaram seu público, conviveram com grandes nomes da MPB,
tornaram-se amigos íntimos dos Mutantes e desbundaram”.
Em 1971, com o nome de Liverpool Sound, o quinteto trocou de
gravadora e lançou um compacto simples, produzido por Nelson Motta, com as
músicas “Fale” e “Hei menina”, que chegou a tocar bastante nas rádios. “O
Nelsinho é um cara sedutor e conseguiu que a gente fosse para a Phillips. E nessa
época nós ficamos muito mais rebeldes”, recorda Mimi. Num momento em que a
juventude reprimida pela ditadura militar e pela sociedade conservadora
brasileira buscava se refugiar nos ideais libertários do movimento hippie, o
que aconteceu com os cinco rapazes do IAPI não foi diferente: “A gente
participava ativamente, tinha uma postura psicodélica, achava que a mudança do
mundo viria por paz e amor, e nossas músicas começaram a refletir isso”,
explica o guitarrista-base da banda.
Para ele, um dos shows mais especiais daqueles tempos foi o
Liverpool Sounds & Sons, no teatro Leopoldina, em Porto Alegre. Além de
reunir recursos audiovisuais, como filmagens do quinteto em lugares da cidade
onde cresceram, o espetáculo foi um dos melhores exemplos do que eles eram
capazes de fazer em cima de um palco, tocando com uma afinidade incrível, quase
que por telepatia. “A gente começava com uma levada que não tinha combinado e
aquilo virava uma evolução enorme”, descreve Marcos. “Quando começou o
psicodelismo mesmo, tocávamos várias versões da mesma música no mesmo show. A
gente tava muito doido, queria se expressar e não importava mais nada”.
Se no resto da cena underground do Brasil a banda já era
disputada, na capital gaúcha era fácil ficar mais gente para fora das apresentações
do que para dentro. Lá o Liverpool era muito querido e lotava os lugares com
fãs orgulhosos, afinal, eles eram os guris que representavam o Rio Grande do
Sul em todo o país. “Nós tínhamos uma base familiar muito forte”, afirma Mimi
Lessa. “Mas aí começamos a desbundar muito, a fumar, a fazer experiências com
drogas, LSD, coisa que no Sul a gente não fazia”.
Eu sei
Tanta coisa, eu
sei,
Se você não sabe
é melhor saber,
Venha me dizer
(Trecho de “Tão longe de mim”, do disco Por
Favor Sucesso, de 1969)
Este foi o começo do fim para o grupo: apesar do relativo sucesso
que haviam alcançado, o disco de 69 não vendeu bem e eles ainda se
desentenderam com a Globo quanto aos rumos a serem seguidos no Som Livre
Exportação. Acabaram perdendo o contrato com o programa e também com a
Phillips. A verdade é que, jovens e ingênuos, os músicos não tinham muito
controle sobre sua carreira e acabaram totalmente duros, sem a grana da
gravadora para continuar vivendo em Copacabana. O jeito foi morar por alguns
meses em Nova Friburgo, para tentar criar um material novo – através de um
conhecido, Carlos Kohler, a banda se mudou para um sítio onde antes existia uma
comunidade hippie, que serviu de cenário para o filme Geração Bendita em 1970.
Os contatos feitos no Rio de Janeiro, com pessoas e artes bem
diferentes das conhecidas em Porto Alegre, haviam aberto a cabeça dos gaúchos
para as viagens por meios químicos, especialmente a maconha e o ácido
lisérgico. Para Marcos, pessoalmente, aquilo foi um despertar, um encontro com
Deus. Seu irmão concorda que as drogas permitem uma percepção para enxergar
algo que não é possível ver logo de cara: “Você pode fazer uma coisa incrível
mas, quando passa o efeito, toda aquela cor volta a ser preto e branco. É
depressivo, muitas pessoas não voltam... e nós entramos de cabeça nisso”,
explica o guitarrista. “O Pekos, por exemplo, era totalmente careta, só queria
as gatinhas. ‘Tô bonito, tô cheiroso, tô gostoso’, as gatas voavam em cima. Mas
aí um dia ele fumou um forte e entrou na viagem, mudou radicalmente. Começou a
escrever, a fazer uma afinação diferente no violão, tocava uma gaita, pirou”.
A rotina natureba em Friburgo consistia, basicamente, em tomar
banhos de cachoeira pelados e criar música o tempo todo. “Era bem afastado, não
tinha nem luz. Para ensaiar a gente ia num outro sítio, onde tínhamos um
equipamento muito bom, igual ao dos Beatles, um dos melhores na época”, lembra
Edinho. “Ficava tudo num celeiro, tinha que tirar o cocô de vaca, limpar, e aí
fazíamos o maior som”. O único meio de contato dos garotos com o mundo
civilizado era uma Kombi, que os levava para as cidades próximas onde se
apresentavam de vez em quando. Lá na serra, o baixista Pekos vivia numa espécie
de mantra: ia para a cachoeira de manhã, voltava, pegava o violão e a gaita,
ficava o resto do dia tocando.
“Era um processo de loucura e você ia enlouquecendo junto. Eu
detestava, sou urbanóide, coca-cola. Aquilo quase me deprimia e pra banda
também não foi bom”, afirma Mimi. Certa noite, Pekos foi para a cachoeira e não
voltou. Em seu quarto, os amigos encontraram seu baixo e todas as letras que
havia escrito, junto com um bilhete explicando que tinha ido embora porque não
agüentava mais. “Pegou o violão, a mochila, uma roupa, deixou toda aquela
vaidade, coisa de hippie mesmo, e se mandou”, conta o guitarrista. “Voltou 45
dias depois, sem ninguém saber onde ele andava. Magro que nem um mendigo, preto
de sol, sujo, e o olho lá no fundo, meio maluquete. E comeu, comeu, comeu”.
Nesse meio tempo, os outros quatro integrantes do Liverpool foram
parar na cadeia de Nova Friburgo. O estilo de vida que se levava naquele sítio,
desde a época das filmagens de Geração Bendita, incomodava a vizinhança
conservadora. “Era um movimento hippie autêntico, mas eles não entendiam, achavam
que a gente estava fazendo a revolução. Era uma revolução cultural,
criticávamos a falsa moral da sociedade em relação ao capital e a várias outras
questões”, explica Marcos. Os gaúchos foram avisados de que a polícia ia bater
lá um dia, e realmente bateu: como não encontraram nada, forjaram meio quilo de
maconha na casa e prenderam todo mundo. Na delegacia, fizeram com que os
músicos assinassem uma nota de culpa e, até os empresários lá do Sul aparecerem
para ajudar, um mês se passou.
“O que me salvou foi justamente a música. Eu tocava uma flauta de
bambu, tocava samba, fizemos amizade, éramos os caras intocáveis”, relembra
Edinho. Justamente nesse período, o baixista Pekos voltou de suas andanças e o
juiz concedeu uma licença para a banda realizar dois shows que já estavam
marcados, sempre com a escolta da polícia, é claro. Os garotos ainda foram a
julgamento e acabaram sendo absolvidos: “Provaram nossa inocência porque o fumo
estava deteriorado, mofado, se fosse nosso não estaria assim”, explica o baterista.
“Isso foi uma coisa muito louca, que nos deu uma outra visão, aí viemos embora
para o Sul. Chega de se aventurar, vamos voltar pra estrada, pra metrópole”.
No entanto, o retorno a Porto Alegre não foi suficiente para que o
Liverpool superasse o baque sofrido em Nova Friburgo. O quinteto fez algumas
apresentações na capital gaúcha, mas não agüentou segurar a barra do desbunde
em plena ditadura militar. “O Pekos voltou a tocar e a ser louco de novo.
Começou a se drogar, vendia fumo, e nós meio que junto. Aí ainda prenderam os
roadies com a nossa Kombi cheia de maconha, a polícia foi na casa dos meus pais
e disse ‘Senhora, vaza que isso aí...’”, conta Mimi. Cabeludos e loucões, os
músicos passaram a ser perseguidos o tempo todo, acusados até de corrupção de
menores – “era uma loucura, porque eu era menor também!”, afirma Edinho. “Foi
ficando muito difícil continuar tocando. A gota d’água foi a gente assim,
reunidos pra ver como seriam os cartazes do show, de repente a polícia invade
tua casa, fomos algemados a coronhadas. E pô, que loucura, só porque tô fazendo
música, não sou bandido”. Pela primeira vez desde que começaram a tocar juntos,
os cincos garotos se separaram e cada um seguiu seu caminho.
* * *
Edinho e seus dois primos voltaram para o Rio de Janeiro, Pekos
ficou no Sul e Fughetti se mandou com a esposa de navio para a Europa, onde
iria conferir ao vivo e a cores tudo
aquilo que havia escutado em seu quarto no IAPI. Entretanto, não
demorou muito para os amigos voltarem a se aproximar, pouco a pouco: em 1973,
Mimi e Edinho estavam em Porto Alegre visitando a família, quando resolveram
fazer uma jam session para tirar algum dinheiro. Chamaram Pekos e o guitarrista
Zé Vicente Brizola, filho do político Leonel, e lotaram o Clube da Cultura, no
bairro Bom Fim, como lembra Mimi: “A gente ainda tinha um nome por lá. Então
peraí, vamos ganhar mais um dinheirinho, mais uma semana aí”. Junto com outro
músico local, Cláudio Vera Cruz, eles passaram a se apresentar no circuito
underground da capital gaúcha mostrando um rock bem diferente dos tempos de
Liverpool, mais progressivo, pesado e denso, com influências como Rolling
Stones, Yes e Pink Floyd; assim começava a história do Bixo da Seda.
Não espere por
ninguém,
Venha logo sentir
o sabro de ser;
Chore ou ria é
com você,
Isso é como teria
que ser
Apesar do interesse gerado no Rio Grande do Sul, a nova banda
ainda era muito inconstante e Mimi resolveu voltar ao Rio de Janeiro, onde
tocava com outros dois grupos. Mas não deixaram: “A mulher do nosso empresário
foi me buscar porque eu tinha um contrato para cumprir, senão ia ter problema
de justiça”, explica o guitarrista. “Eu disse ‘meu deus, então eu vou, mas só
se meu irmão for também!”. Marcos, que naquela época já criava uma filha
pequena no Rio, topou a idéia e embarcou junto com o irmão num ônibus para
Porto Alegre. Chegando lá, foram direto para o ensaio e depois para a casa da
mãe; só tiveram tempo, porém, de tomar banho e jantar, pois quando terminaram
de comer já havia um ônibus parado na porta, esperando para levá-los ao tal
compromisso contratual: um festival de rock no balneário de Praia de Leste, no
Paraná.
“Nesses festivais grandes, Woodstocks brasileiros, todo mundo
tomava ácido e fumava baseado, e nessa época a Rita Lee se apresentou com o
Tutti Frutti”, lembra o mais velho dos irmãos Lessa. Além da ex-Mutantes,
também tocaram na ocasião o Terço e o Som Nosso de Cada Dia, enquanto o Bixo da
Seda estava lá para representar o Rio Grande do Sul. Segundo Mimi, o público
não gostou muito das outras atrações: “A Rita e o Terço chegaram com aquelas
coisas progressivas e nós chegamos com uma batida diferente. Aquilo era um rock
meio dançante, pulsante, e nessa levada desbancamos todo mundo na Praia de
Leste. Arrebentamos com o lugar, não teve pra mais ninguém, o povo veio abaixo
quando a gente tocou!”, conta o guitarrista. Mais tarde, no quarto do hotel, os
gaúchos do Bixo ouviram elogios impressionados de todos os músicos, de Rita Lee
e até da empresária dela. Mimi, que deveria voltar para o Rio de Janeiro no dia
seguinte, foi conversar com seu empresário:
Bixo da Seda
- Vocês não podem acabar com essa banda de jeito nenhum! -,
suplicou o homem.
- Cara, vocês têm que apresentar o mínimo de condições pra gente
fazer isso.
- O que vocês querem?
- Quero uma casa na praia, pra ficar ensaiando até estrear em
Porto Alegre! -, respondeu o guitarrista.
- Fechado!
Mimi foi para o Rio com o irmão, pegou seu amplificador e se
despediu dos companheiros de lá. A essa altura, Fughetti já tinha voltado da
Europa: “Na Praia de Leste ele subiu no palco com uma flauta que tinha trazido,
só pra dar uma canja, não era o Liverpool”, explica o guitarrista. “E nós
levantamos o Bixo da Seda sem ele”; e sem Pekos também. O baixista, responsável
pelo nome do novo grupo – “não é o bichinho da seda, é tipo ‘me dá a seda, pra
enrolar o baseado’”, esclarece Edinho –, não havia voltado da viagem no
desbunde. Mimi Lessa faz uma comparação com os Rolling Stones: Fughetti era
como Mick Jagger, o homem que estava na frente, compunha, cantava e ficava como
autor, enquanto Pekos era um tipo Brian Jones, que permanecia lá atrás, mas
também compondo muito. “Era um cara que eu conhecia há anos, confiava, aí ele
falava pra mim: ‘Olha, encontrei Paul’ – Paul McCartney – ‘lá no fim da linha’,
que era um lugar que a gente chamava. Aí pô, você se assusta né, ele começou a
ficar maluquinho”, recorda Mimi.
Estabelecidos na casa de praia prometida pelo empresário, os
irmãos Lessa, Edinho Espíndola e Cláudio Vera Cruz mergulharam numa rotina de
ensaios e logo estavam agitando o circuito musical de todo o Rio Grande do Sul
com seu Bixo da Seda. “Estávamos mais maduros e tínhamos uma formação de
músicas próprias muito forte”, afirma Marcos, que assumiu o papel de baixista.
“Fazíamos uns shows muito performáticos, mandava uns caras fazerem uns grafites
atrás, uns cenários do nada, umas selvas com árvores mortas, a gente não tinha
grana e se virava”. Um artigo do jornal Zero Hora, guardado até hoje pelo
baterista do grupo, descreve uma das primeiras apresentações na capital gaúcha:
“(...) tente lembrar, na memória ou na imaginação, uma certa sexta-feira de
março de 1975, quando Mimi e sua guitarra, Marcos e seu baixo, Edinho e sua
bateria, Cláudio Vera Cruz e sua guitarra também, quase botaram abaixo o Teatro
de Arena, no dia de estréia das Rodas de Som [shows coletivos comandados por
Carlos Hartlieb]: mais de 200 pessoas se espremendo lá dentro, outras 500
berrando para entrar”.
Até o final de 75, Fughetti Luz acabou entrando para o Bixo da
Seda e a gravadora Continental foi buscar os garotos em Porto Alegre, para
gravarem seu primeiro disco; a história se repetia como nos tempos do
Liverpool. Sem Cláudio Vera Cruz – que saiu da banda após alguns
desentendimentos –, Mimi, Marcos, Edinho e Fughetti foram para o sítio do
ex-Bolha Renato Ladeira, em Itaboraí, no Rio de Janeiro, para terminar de criar
o material para o LP. O cantor e o guitarrista continuaram como os principais
compositores: “Eles colocavam as letras na roda e a gente ia dando idéia, aí os
arranjos pintavam com a banda toda tocando”, descreve o baterista. Em 1976, o
Bixo da Seda se trancou nos estúdios cariocas para gravar o disco homônimo, com
Ladeira introduzindo o som do órgão. Na capa, o desenho de um objeto que
poderia ser tanto um alto-falante quanto um disco voador e, na parte interna,
um retrato da casa dos meninos, o bairro do IAPI.
Para Mimi Lessa, a gravação não traduz o que a banda realmente era
em cima dos palcos: “O show do Bixo era pra arrebentar! O Fughetti tinha uma
fúria cantando, parecia um trem que te levava. Não era uma questão de voz, era
uma loucura muito forte, tanto que ele cantava três músicas e na quarta já não
agüentava mais, de tanto gritar”. O lançamento do LP levou o quinteto gaúcho a
se apresentar por todo o Sul e Sudeste do país; um dos espetáculos mais
memoráveis foi realizado num festival em Saquarema, no litoral fluminense, como
descreve Marcos: “Foi fantástico, começou a chover muito, caíam raios, a gente
subiu no palco e a chuva parou. O tempo começou a abrir, com arco-íris, a gente
tocando num cenário mágico, aquele clima maravilhoso... esse show merecia um
disco”.
Dali até o final dos anos 70, o Bixo da Seda continuou existindo
com a mesma formação do antigo Liverpool – exceto pela ausência de Pekos –,
familiar e íntima. “Eu como músico só tinha tocado com eles, quando toquei com
outras pessoas não sentia aquela energia”, explica Edinho. “Nós tínhamos uma
interação muito grande, de tocar e nem precisar se olhar. Até hoje acontece
isso”. Para Mimi Lessa, o Liverpool era mais tropicalista, alegre e brasileiro.
“Mais nossa infância, juventude, puberdade quase, eu mal sabia o que era uma
mulher. Era mais sonhador”, descreve o guitarrista. “Já o Bixo da Seda era uma
porrada, um rock enérgico, pesado, distorcido”.
No livro de Gilmar Eitelvein, Fughetti também compara as duas
bandas: “Entendo que o Bixo foi o estágio mais evoluído do Liverpool, estávamos
chegando aonde queríamos, viajando na composição, criando cada vez mais e
melhor, trabalhando com compassos quebrados e diferentes. O Bixo era mais
pesado, mais roll, mais minha praia”. O baterista Edinho lembra que, quando ele
e os companheiros radicalizaram em sua segunda formação, as pessoas chamavam
aquilo até de rock tupiniquim. A realidade é que, passados quarenta anos, o Bixo
da Seda é reconhecido como o principal criador do rock gaúcho, ao lado dos
Brasas e dos Cleans.
“Virou um estilo, ‘ah, toca tipo rock gaúcho’. Nós que levantamos
essa bandeira, esse rock gaúcho quem fez fomos nós!”, exclama Mimi. Apesar do
nome, seu irmão Marcos acredita que o regionalismo do Sul não influenciou a
obra do grupo, mas sim que aquela foi a forma que eles encontraram para se
expressarem de uma maneira brasileira, com suas próprias composições. O certo é
que, tanto como Liverpool ou como Bixo da Seda, esses músicos foram os
responsáveis por abrir as portas do rock para muitas gerações de rebeldes de
Porto Alegre e arredores. “Lá você tinha aquela educação antiga gaúcha, aquela
repressão que acaba virando uma resposta contrária, porque a gente queria
arrebentar mesmo, [e grita, aaaah]! Nada como o rock para poder traduzir isso”,
explica Mimi.
Com a chegada da disco music no final daquela década, o rock
entrou em decadência e o Bixo da Seda foi perdendo o espaço que tinha
conquistado. O cantor Fughetti, idealista e mais
radical, não aceitava fazer jingles ou trabalhos comerciais, mesmo
que não tivesse dinheiro para comer. Quando os colegas conseguiram um emprego
acompanhando As Frenéticas, ele retornou de vez para o Rio Grande do Sul. Mimi,
Marcos e Edinho também não agüentaram por muito tempo aquela situação, afinal,
já eram homens crescidos, cada um com sua vida particular e famílias para
sustentar. Os irmãos acabaram se estabelecendo no Rio de Janeiro, enquanto o
baterista voltou a viver na capital gaúcha, onde está até hoje.
O baixista Pekos, por sua vez, não agüentou o tranco do desbunde e
morreu no início da década de 90. Os outros integrantes continuam mantendo
contato e chegaram a se reunir como Bixo da Seda em algumas ocasiões. Em 1996,
foram convidados pela prefeitura de Porto Alegre para se apresentarem na
inauguração de um teatro, acompanhados de uma banda marcial de colégio –
“aquilo parecia um sonho, o público adorou, foi um espetáculo”, afirma Mimi.
“Dois anos depois, dividimos o palco com o Luis Carlini, porque o Fughetti é
louco por ele, ama desde criança. E nós lotamos aquilo!”.
Depois disso, o cantor preferiu não voltar mais a se apresentar
com o grupo. Em 2006, os irmãos Lessa e Edinho Espíndola fizeram alguns shows
no Rio Grande do Sul com um substituto nos vocais, aprovado por Fughetti. “A
gente tem muita história lá, existem várias músicas nossas que a galera de
Porto Alegre canta e não foram gravadas até hoje, pois não coube tudo no LP”,
conta Mimi. Ele, Marcos e o primo baterista ainda têm vontade de retomar o
trabalho de criação para um segundo disco do Bixo da Seda – resta convencer o
amigo Fughetti e algum financiador para bancar essa viagem psicodélica no
tempo.
Alquimistas do som
“O Módulo 1000 era único:
uma mistura de peso e psicodelia com riffs abundantes, guitarra distorcida,
órgão com caixa Leslie, sintetizador, baixo firme e uma bateria que me lembrava
Ginger Baker, do Cream... Tinha muitos efeitos. Havia também as inusitadas
composições, algumas quase monossilábicas, mas cheias de truques. Tinha
densidade e tensão no som da banda que, aliás, era sempre muito bem executado.”
Eles eram cabeludos e bradavam, pra quem quisesse ouvir, “como é
feia uma cabeça sem cabelos”, só que em latim. Influenciados pelo que era
considerado o melhor do que havia na década de 70 em termos de rock - Yes, Led
Zeppelin, Cream, o Módulo 1000 começou como a maioria das bandas da época, sem
muitas pretensões, e logo se tornou um dos maiores representantes do rock
setentista brasileiro. Som pesado e apresentações performáticas renderam aos
cariocas o apelido de Black Sabbath tupiniquim. Comparações e classificações à
parte, a história é simples, mas os detalhes são a alma do negócio – assim como
o som.
“Ipso facto,
Ipso facto
Turpe est sine
crine caput”
(Letra de “Turpe est sine crine caput”, do
disco Não Fale Com Paredes, lançado em 1971)
Daniel Romani, guitarrista carioca e então jovem desbundado,
apostava todas as suas fichas na carreira musical. Depois de algumas tentativas
musicais em forma de bandas que levavam outras nomenclaturas, formou Os Quem,
uma homenagem ao grupo inglês The Who, com alguns companheiros ideológicos,
entre eles Eduardo Leal – vizinho e parceiro de jogos de botão. Convidado para
integrar Os Quem junto com Armando (bateria), ele aceitou o desafio imposto
pelo amigo de longa data e mergulhou nos estudos exigidos por seu novo
instrumento - estava aprendendo a tocar violão; logo passou para a guitarra,
mas como o próprio Daniel assumia esta responsabilidade, resolveu se aventurar
por outras cordas. Descobriu o contrabaixo.
Tudo era muito precário, afinal, eram rapazes latino-americanos
sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes, que embarcaram na viagem da
música. Não tinham equipamento. Não tinham grana para sustentar seu próprio
sonho. Fabricavam guitarras e vendiam aos clientes menos experientes.
Renderam-se aos bailes e às apresentações cheias de covers com o intuito de
evoluírem financeiramente e assim bancar sua originalidade. Mudaram de nome. Os
Quem viraram Código 20 e com a alcunha ganhando prestígio pelos clubes
cariocas, incluíram mais um integrante a esta formação: Paulo César Willcox, o
Zé Bola, vibrafonista.
Tocavam, até então, com equipamento emprestado, bancado pelos
empresários das noitadas de baile. Foi nessa época, em 1968, que participaram
de um concurso para bandas amadoras da TV Globo. Estavam em jogo quatro
apresentações no programa do Paulo Silvino e, o mais importante, aparelhagem e
instrumentos para uma banda completa. Aproveitaram a oportunidade única e
providencial, mas na hora H, um imprevisto: “Os empresários compraram os
instrumentos para nós e em troca dávamos a grana dos bailes para eles. Só que
chegou um ponto em que o dinheiro era muito pouco e não tinha o que repassar.
Não pagávamos o que tínhamos combinado. Na véspera do festival fomos ensaiar e,
quando íamos começar, eles chegaram e confiscaram tudo. Fomos sem ensaiar
mesmo!”, lembra Eduardo Leal. Mais do que enturmados, afinal, apresentavam-se
com freqüência, os meninos não se deixaram abalar e seguiram para o concurso.
Era a tábua de salvação. Na apresentação final, no programa do Chacrinha,
uniformizados com terninhos caretas, tocaram como se fosse a última coisa a ser
feita antes de morrerem. “Tequila”, dos Champs, foi a canção escolhida e no
meio da apresentação, Willcox deixa o vibrafone para atacar dois tímpanos de
orquestra, duelando com a bateria ferozmente. O inesperado funcionou e dentre
milhares de jovens concorrentes acabaram levando vantagem. Como em um sonho,
resolveram seu maior problema. Arrebataram o primeiro lugar, status, contatos e
de quebra a carta de alforria – a aparelhagem.
“Uma pessoa é uma
figura,
É uma imagem,
Numa moldura”
(Trecho da letra de “Não fale com paredes”,
do disco homônimo lançado em 1971 )
Cândido Souza Farias, o Candinho, assume as baquetas no lugar de
Armando. Começaram então uma nova fase, investindo em técnica e
profissionalismo. Amadureceram. Em 1969, graças aos contatos herdados da
vitória anterior, foram contratados para vir a São Paulo tocar em uma boate
chamada Catraka. “As condições eram muito boas. Teríamos casa com piscina,
jardim, mulheres... o dinheiro era bom”, conta Daniel. Acharam em Luiz Paulo
Simas a peça que faltava para o quebra-cabeças: um tecladista. “Eles precisavam
de um tecladista pra cumprir o contrato em São Paulo, eu tinha um órgão
Eletrocord e estudava arquitetura, mas queria largar. Foi a deixa. Entrei para
o grupo”, conta Luiz Paulo. Malas prontas e mais uma pedra no caminho: o nome,
mais uma vez, teve que ser trocado. Havia na capital paulistana o Código 90, o
que fez o Código 20 deixar de existir e dar a vez para o Módulo 1000, homenagem
à paixão pela corrida espacial de Daniel. Deixaram a Cidade Maravilhosa rumo à
Terra da Garoa, onde a banda, com nova formação, começou sua carreira de
verdade.
* * *
Mesmo profissionalizados, a base dos shows do Módulo 1000 ainda
eram os covers. Entrava no setlist o que fazia sucesso na época, como Beatles,
Stones, Hair e Hendrix. Daniel, Eduardo, Luiz Paulo, Candinho e Zé Bola contavam
ainda com um toque especial, a voz feminina de Mirna, irmã do guitarrista, que
assumiu por um tempo o papel de crooner da banda. “Naquela época a gente fazia
dois tipos de som: um para os clientes da boate e, paralelamente, fazíamos o
nosso som, com nossas composições”, conta Eduardo. A
sede pelos arranjos próprios distanciava o pensamento de Willcox
do resto do grupo. O vibrafonista percebeu que estava perdendo espaço e deixou
o Módulo 1000 logo após sua participação no V Festival de MPB da Record, em 1970,
onde defenderam novamente a quebradeira latina de “Tequila”, desta vez sem o
uniforme careta.
O mais novo quarteto da praça era um sucesso na capital paulista.
Incluíam discretamente algumas composições próprias no repertório de baile e
sentiam-se cada vez mais seguros, afinal, a aceitação era boa. O espaço no
mercado ia sendo conquistado aos poucos. Começaram a fazer seus famosos
bailes-shows de quatro horas em outros lugares. Rodaram o litoral paulistano e
chegaram a tocar no Círculo Militar para uma platéia alvoroçada de mais de 5
mil pessoas. Incitados por uma jovem dupla de compositores, Sérgio Fayne e
Vitor Martins, os rapazes participaram de uma audição para a seleção de um novo
cast da gravadora Odeon. Assinaram seu primeiro contrato em 1970 e gravaram
algumas canções próprias, hoje renegadas, seguindo o conselho dos produtores
responsáveis – uma coisa mais leve, com influências da MPB. Com a confiança dos
figurões da Odeon ganharam mais liberdade na hora de produzir. “Ferrugem e
Fuligem”, faixa do LP Posições – um compilado com outros companheiros de selo:
Som Imaginário, Tribo e Equipe Mercado, trouxe uma levada mais pesada, um Led
Zeppelin com batidas de jazz, explicitando de vez o gosto musical do grupo.
* * *
A quinta edição do Festival Internacional da Canção, no Rio de
Janeiro, foi o primeiro passo para o cume na trajetória do Módulo 1000 – os
shows psicodélicos e a gravação do cultuado álbum Não fale com paredes.
Convidados a interpretar a canção “Cafuza”, composição dos parceiros Martins e
Fayne, o grupo voltou à terra natal para defender a música no Maracanãzinho
lotado. Segundo Daniel, cerca de 30 mil pessoas assistiram a apresentação.
Apesar da música não ser representante do estilo almejado pela banda, eles aceitaram
o convite, fizeram os arranjos e retornaram para a cidade de origem. Ficaram
hospedados no Hotel Glória com tudo a que tinham direito. Não venceram, ficaram
em sétimo lugar, mas a exposição alcançada foi suficiente para deixarem a
obscuridade e partirem para vôos maiores.
“Eu quero ver o
outro lado da realidade,
Espelho (...)
Tem certeza do
que está me mostrando?
Espelho (...)
Preciso sair
desse lado,
Preciso mudar de
lugar”
(Trecho da letra de “Espelho”, do álbum Não
Fale Com Paredes de 1971)
Marinaldo Guimarães, empresário famoso na época por investir em
bandas alternativas, gostou do que e viu e convidou os jovens para participarem
de mais um de seus planos mirabolantes – o projeto Aberto para Obras, no Teatro
de Arena da Guanabara. Espetáculo de vanguarda, a proposta era , segundo narra
o jornalista Carlos Ferreira na Rolling Stone de 4 de abril de 1972, “atingir
novas proposições no campo da estética e da percepção e onde aconteciam
simultânea e/ou alternadamente experimentos
tácteis-fonéticos-visuais-auditivos-olfativos-gustativos ao lado de atividades
consideradas ‘não artísticas’”. Daniel Romani descreve exatamente o que se
passava pelo teatro: “As pessoas entravam por um corredor. Quando chegavam ao
fim, achando que estavam no palco, encontravam uma cerca de arame farpado.
Tinham então que subir uma escada, mas ao chegar ao topo percebiam que não
tinha uma escada para a descida – eles tinham que pular. Tinha mulher de salto,
homem tinha que segurar, coisas assim. Seguiam para as cadeiras. Das cadeiras
para o palco tinha outra cerca de arame farpado, que de vez em quando, no meio
do show, vinha um cara grandão e sacudia, aterrorizando o público. Nas cadeiras
tinham manequins
sentados. Pelo resto do lugar tinha pintor trabalhando, tinha um
cara que ficava estático, sentado num vaso sanitário do lado do palco, por duas
horas. No final do show ele pegava o violão e destruía na privada. Tinha também
uma menina que estourava pipoca em um fogão no palco e distribuía pra platéia.
Era um happening!”. Na verdade existiam três tipos de palcos montados em forma
de triângulo, com três bandas se apresentando. Além do Módulo 1000 tocaram O
Terço e a Tribo. A platéia, a essa altura do campeonato, já mais doida que os
músicos, divertia-se com a concretização das maluquices alheias.
Por mais bizarro que fosse, o show abriu muitas portas para o
grupo carioca. Começaram a tocar em outros teatros espalhados pela cidade.
Sempre performáticos, movimentavam fãs e muitos curiosos para suas
apresentações. Para o Teatro da Praia, em Copacabana, prepararam mais uma
estripulia. Na frente do palco, uma grande tela feita por quatro lençóis
costurados. Spots eram posicionados para que a luz fosse projetada de baixo
para cima, aumentando as sombras dos músicos, que tocavam atrás do tecido
vestidos com casacos de pêlo, chifres e coisas do gênero. Andavam de quatro,
representavam e divertiam. Colocavam caixas de som ao redor da platéia e davam
um toque final com muitas luzes coloridas, principalmente douradas, globos
espelhados. “A luminosidade estava diretamente associada com o fator das
viagens”, revela o guitarrista. Luiz Paulo lembra ainda que foi neste show que
usaram, pela primeira vez, um sintetizador – um Synthi A produzido pela fábrica
inglesa EMS. “Eu fui a primeira pessoa a usar um sintetizador no Brasil. Juntei
dinheiro e comprei um. Era pequenininho, do tamanho de uma maleta de executivo.
Nem tinha teclado, eram só os botões de efeito”, ele lembra.
* * *
Apesar da profissionalização, os músicos não perdiam a alma de
moleques. Contratados para se apresentarem no “desfile de manequins” da Rhodia,
reservaram para o grand finale uma penca de bananas, que jogaram, com a maior
cara de pau, nos espectadores da área vip.
Outra aventura, dessa vez em alto mar, foi a contratação para
tocar em um navio, o “Cruzeiro Turístico ao Norte”, que seguiria rumo a Manaus.
A organização havia visto a banda defender “Cafuza” no FIC e pensou,
erroneamente, que aquela era realmente a cara do grupo. Erraram feio e quando o
show começou com “Whole Lotta Love”, do Led Zeppelin, foram convidados a descer
do palco imediatamente. “Aqui a gente faz a dança do limão. As pessoas dançam
juntinho e essa música não é apropriada”, bradava o produtor desesperado. No
final das contas, como não se pode simplesmente deixar um navio quando dá
vontade, o grupo seguiu viagem literalmente, mas os rapazes passaram do status
de empregados para convidados.
“Olho por olho,
Dente por dente,
Quanto maior o
pulo,
Maior a queda”
(Letra de “Olho por olho, dente por dente”,
do disco Não Fale Com Paredes, de 1971)
Os garotos ensaiavam diariamente por horas. Tamanho era o
interesse pela música que, não bastassem partituras e melodias mais engessadas,
faziam questão de experimentar, tirando proveito das mais estranhas coisas que
pudessem emitir algum tipo de som – canos, caixas, fitas ao contrário, entre
outros. Luiz Paulo era sem dúvida o Professor Pardal da turma e foi ele que, em
uma dessas sessões experimentais acabou se tornando o mentor da criação do
Mandum – hoje conhecido mundialmente como talk-box, instrumento utilizado por
bandas como o Foo Fighters (na música “Generator”). “Um dia estávamos
ponderando o que acontece com uma caixa de som se ela for hermeticamente
fechada.
Por onde sai o som? Bom, o som não sai, né? Então colocamos um
alto-falante numa caixa e ligamos o alto-falante num amplificador. Fizemos um
buraco nessa caixa e o som passou a sair do buraco. Deixávamos um microfone
pendurado como um pêndulo passando pelo buraco. Depois disso, colocamos uma
mangueira que pegamos no quintal no buraco da caixa e levávamos à boca – aí era
só abrir e fechar. A primeira vez que fomos ouvir alguém fazendo coisa
semelhante foi em 1979, no disco Frampton Comes Alive, do Peter Frampton (disco
oficialmente lançado em 1976).”, lembra Romani. O Mandum rapidamente ganhou
notoriedade com a curiosidade da mídia e, apoiados no total desconhecimento dos
jornalistas em relação ao assunto, a invenção rendeu ao grupo boas risadas. Uma
vez foram entrevistados a respeito da novidade por profissionais do Globo.
Quando indagados a respeito do nome da criação não titubearam: “enquanto
Candinho ria exaustivamente, escondido, Daniel e seus companheiros de banda
inventavam histórias psicodélicas a respeito da questão”. O jornalista tomava
nota rapidamente enquanto os moleques explicavam que Mandum era um macaco que
vivia escondido nas árvores na hora do rush. Do alto eles observavam os
executivos saírem dos bancos. Não contentes com o absurdo, complementavam que o
animal recém-inventado era comumente atacado por mendigos, que os comiam, mas
que isso não era bom porque os Manduns tinham propriedades semelhantes ao
mercúrio. Besteiras à parte, a experiência é autêntica, mas gera controvérsias
até hoje. Uns dizem que o talk-box foi uma invenção de Bob Heil, feita em 1973.
Se esta versão for a correta, os cariocas do Módulo 1000 estão à frente.
Quero medir o
calor e a profundidade
Temos que saber
onde você quer chegar
Vamos seguir...
O seu Metrô
Mental
Para descobrir
qual o caminho de volta
(Letra de “Metrô Mental”, de Não Fale Com
Paredes, disco de 1971)
Outra invenção tão importante e certamente mais glamourosa é
novamente atribuída a Luiz Paulo – só que esta é oficial. O famoso e
exaustivamente explorado “Plim-Plim” da Rede Globo é de sua autoria. Sim! Como
narra Ana Maria Bahiana em seu Almanaque dos anos 70, “O som do plim-plim é
criação do músico Luiz Paulo Simas, multitecladista de grande talento,
superantenado nas mais recentes novidades de sintetizadores (...). Era uma
medida da crescente hegemonia da Globo o uníssono acorde dos “plim-plins” que
se ouvia pelas ruas das grandes cidades brasileiras, ecoando em becos e poços
de edifício, entre 19h e 22h”.
* * *
Ademir Lemos trabalhava na Top Tape e em 1971 recebeu um espaço
para gravar o que bem entendesse nas dependências da gravadora. Não pensou duas
vezes, chamou o Módulo 1000 para uma tentativa de registrar o que estava
fazendo sucesso no circuito underground brasileiro, só que com uma condição:
que o trabalho começasse a ser feito imediatamente. A maioria dos grupos não
chegava a esse estágio, gravar um long-play era praticamente um artigo de luxo.
Mas existia uma coisa que incomodava os roqueiros experimentais: o tempo.
Depois de mais de 30 anos deste fato, o raro ponto em que dividem a mesma
opinião é em relação ao tempo: eles queriam tempo pra gravar composições mais
complexas. “As que gravamos eram protótipos”, lembra Daniel Romani. O material
mais “bem feito” que tinham em mãos não estava suficientemente polido e, como
recusar um convite desses era uma loucura até mesmo para os mais desbundados,
não disseram não. Surgiu assim o cultuado disco Não fale com paredes. A essa
altura do campeonato as músicas que entraram no LP não estavam mais sendo
tocadas ao vivo – apesar do reconhecido sucesso que fizeram.
Com o estúdio da Musicdisc à disposição os garotos levaram
técnicos e outros profissionais calejados à loucura. Ecos, amplificadores
colocados no banheiro, guitarras gravadas ao contrário e outras estripulias
lisérgico-sonoras soavam para os desavisados como sujo e terrível. São nove
faixas com muito rock psicodélico brasileiro que varia, na maioria das vezes,
entre o progressivo e lisérgico, quando não os dois juntos, marcados por uma
bateria única, forte. As letras não eram o que mais preocupava a banda. A
faixa-título, por exemplo, traz a frase “Não fale com paredes” repetida
inúmeras vezes, enquanto a tão enigmática “Turpe est sine crine caput” soa como
um mantra paranóico, que repete o desconhecido sugerindo praticamente um transe
psicodélico. Curioso é saber que as letras eram erroneamente interpretadas. A
primeira era uma verdadeira afronta à ditadura, conta Daniel, que explica que
“Não fale com paredes” é a mesma coisa que falar que não adianta discutir com
os censores. As paredes também representavam os obstáculos que as pessoas
tinham que transpor na época. Uma outra canção, “Olho por olho, dente por
dente”, teve a letra (frase) retirada da assinatura do Manifesto Subversivo do
seqüestro do embaixador americano no Brasil. Mas, ironicamente, a música que
mais incomodava os repressores era a cantada em latim. Turpe est sine crine
caput significa: é feia uma cabeça sem cabelos. E só. Significado não explícito
que causou ao grupo grandes dores de cabeça.
“Das luzes
inimigas
Dos falsos amigos
Das cores
distorcidas
Dos becos sem
saída
Do escuro de
qualquer lugar (...)
Salve-se quem
puder”
(Trecho da letra de “Salve-se quem puder”,
do LP Não Fale Com Paredes, de 1971)
Em um show em Brasília, em 1972, tudo corria como de costume. Os
garotos subiram no palco, tocaram, foram bem recebidos, até começarem os
primeiros acordes de “Turpe est...”. Imediatamente subiram quatro homens
vestidos com ternos pretos, óculos escuros, e começaram a desligar os cabos dos
instrumentos no meio da apresentação. Levaram a banda para a direção de um carro.
Fizeram-nos entrar. “A única coisa que eu pensei nesse momento é que iria
morrer. Adeus, mamãe; adeus, papai; adeus, maninha; adeus, Zepelim – meu rato
de estimação”, brinca Romani. Ficaram todos dentro de uma salinha enquanto os
homens da censura perguntavam qual era a mensagem subversiva contida naquela
música. Em certo ponto perceberam que os meninos diziam a verdade e que, o
único fato em questão, era o de que eles acabaram de pagar um grande mico.
Liberaram o Módulo 1000. Hoje, uns lembram-se do causo enquanto outros juram
que ele não aconteceu.
Outra letra inocente, mas que representa bem o espírito da turma é
“Lem-Ed-Ecalg”, ou para os íntimos, como revela Luiz Paulo, Glacê de Mel ao
contrário.
Já era de se esperar que um disco desses, naquela época, não faria
sucesso algum. Zezinho, presidente da gravadora que havia dado carta branca a
Ademir, amargava o arrependimento de seu suicídio comercial. Desentendimentos
vieram, mas, a essa altura, não conseguiram evitar que o discos chegassem às
lojas. Fracasso de vendas, obviamente.
Continuaram fazendo alguns shows e produzindo muito, apesar dessa
nova fase do grupo não ter sido registrada. Em 1973 tocaram no que seria o
último festival a contar com a participação do Módulo 1000, o
Transa-Som-Folk-Rock-Pop no Sertão, no Vale do Jequitinhonha. Ao lado de DJ
Ademir, Rui Maurity, Jorge Mello e Serguei, a banda tocou para uma população
local que, em sua maioria, nunca tinha visto uma guitarra elétrica. Era o
começo do fim das maluquices da trupe.
Os anos de convívio ininterrupto já haviam desgastado o
relacionamento dos rapazes, apesar de eles jurarem de pé juntos que não
chegaram a brigar. Por maior que fosse o sucesso dos jovens cariocas, o
dinheiro era escasso e em certo momento os meninos, já crescidos, viam cada vez
mais a necessidade de um alavanco financeiro presente em suas vidas. Reza lenda
que uma bela morena havia causado um desentendimento entre Daniel e Luiz Paulo,
mas isso não nos cabe contar. Fato é que, em meados de 73, o grupo se desfez.
Luis Paulo e Candinho juntaram-se a Lulu Santos, Ritchie e
Fernando Gama e formaram o Vímana, também grupo de rock
psicodélico-progressivo, porém mais funkeado que o Módulo 1000. Seguiram para
uma carreira musical internacional e destilam seu veneno hoje em Nova York e
Miami, respectivamente.
O baixista Eduardo Leal desencantou-se pela música e, visando uma
carreira estável, ingressou nos Correios e Telégrafos, onde acabou pendendo
para a área cultural da instituição. Mudou-se ainda na década de 70 para Brasília,
onde vive até hoje. Aposentado, garante que tem mais tempo para dedicar-se à
suas teorias e filosofias, grandes paixões. Enquanto isso o perfeccionista
Daniel Romani continuou pelas tortas estradas da música no Brasil. Dá aulas de
violão e está preparando um CD definitivo do Módulo 1000. Cedeu seus dotes
instrumentais ao amigo Luiz Paulo, hoje conhecido como Luiz Simas, em um CD
lançado em 2007, que contou com a união dos dois ex-companheiros de banda em
palcos cariocas. Apesar da distância, do tempo e das diferenças, nenhum
recusaria de imediato uma proposta de volta do projeto progressivo-psicodélico.
Fica a sugestão e a expectativa.
O disco Não Fale Com Paredes hoje vale milhares de dólares,
dependendo do país e do catálago em que é anunciado, e é um dos mais bem
cotados no almanaque dos colecionadores internacionais de LPs. Foi relançado
oficialmente em vinil pelo selo alemão World in Sound e desperta cada vez mais
apreciadores agraciados pela era digital dos downloads.
O pensamento é
livre:
a
viagem
do Som Imaginário
Janeiro de 1970. Rio, Copacabana.
Tavito e Zé Rodrix, músicos, companheiros de apartamento e sons,
magrelos e cabeludos, tomavam sol no Posto Seis e Meio como de praxe no início
da década de 70. Foram surpreendidos por José Mynssen, que se identificou como
empresário e os convidou para participar de um show com Milton Nascimento no
Teatro Opinião.
Mynssen nunca tinha empresariado nada. Acabara de vender uma
sapataria e tinha um certo dinheiro sobrando. Quando surgiu a idéia para o
show, procurou Milton, alugou o teatro e foi garimpar os melhores músicos do
Rio direto na fonte, a boate Sachas e seu anexo, o bar Sachinhas. Muito
tradicional, eram nessas casas do Leme que se reuniam os jovens Gonzaguinha,
Joyce e Ivan Lins; e era lá também que um trio de jazz formado por Wagner Tiso
(piano), Luís Alves (contrabaixo) e Robertinho Silva (bateria) se apresentava.
“Chegou um cara e falou ‘eu tô querendo montar uma banda pra acompanhar o
Milton Nascimento’. Esse cara começou a contar vantagem, perguntou onde eu
morava, falou que estava com pressa”, conta Robertinho Silva sobre o episódio.
Tocar com Milton não era problema – a banda inteira já conhecia o
músico. Wagner Tiso, o líder, tocava com Milton desde os 14 anos, eram vizinhos
em Três Pontas Minas Gerais. Luís Alves e Robertinho Silva também já haviam
acompanhado Bituca em outras oportunidades. O problema mesmo era a proposta de
José Mynssen de incluir guitarras. “A gente não queria, éramos mais pro jazz. A
gente não botava fé, mas ele falou que pagava”, lembra Robertinho. Wagner Tiso
reconheceu que “o mundo moderno é guitarra, rock” e foram, então, atrás de quem
fazia rock: Tavito e Zé Rodrix.
Tavito tinha 22 anos. Nascido em Belo Horizonte, já conhecia
Milton de Minas. Tinha vindo ao Rio para tentar viver de música e sobrevivia
dando aulas de violão. Conheceu o explosivo
som imáginário | 69
Zé Rodrix no Sachinhas – o carioca lhe foi apresentado tocando uma
valsa pop no piano e a amizade começou. Zé havia participado de um grupo vocal
famoso na época, Momento 4, que também já havia trabalhado com Milton. Quando o
conjunto acabou, Zé Rodrix passou uma temporada no Rio Grande do Sul, onde
conheceu amigos que, mais tarde, formariam o Liverpool. De volta ao Rio, chegou
a trabalhar no Banco de Tokio. Mas não aguentou, saiu e dois dias depois já
estava com Tavito num estúdio, gravando para Beth Carvalho. Com 23 anos, o
convite de José Mynssen para Zé veio numa hora perfeita.
À turma pop e à turma jazz juntou-se Laudir de Oliveira, percussionista,
importado dos EUA. Milton Nascimento voltou de Ilhéus, onde fazia o filme Os
Deuses e os Mortos, com Ruy Guerra. “Quando voltei me falaram que eles haviam
se juntado para me acompanhar”, lembra. Os ensaios começaram naquele mesmo
janeiro de 1970, enquanto as irmãs de Mynssen arrumavam e pintavam o teatro.
Na sexta-feira da paixão daquele ano estreou Milton Nascimento.
Ah! ...e o Som Imaginário. Foi um escândalo, a começar a data de estréia. “Eu
me lembro das pessoas falando ‘é um absurdo! Estrear um show no dia em que
Jesus morreu!’”, recorda Zé Rodrix. A formação
eclética funcionava no palco. O repertório do show ia de Gira
Girou à Simon e Garfunkel, passando por Vinícius de Moraes, Beatles e uma
versão de 20 minutos de “A little help from my friends”, de Joe Cocker. Wagner
Tiso era o arranjador, mas no palco, Milton e os outros também palpitavam sobre
o som.
O show foi um sucesso – depois de meses no Opinião, foram para a
boate Sucata e, de lá, para São Paulo, numa bem-sucedida temporada no Teatro Gazeta.
Com repertório contestador, aos poucos, o visual e a atitude da banda também
ficaram mais agressivos. Apareciam no palco sem camisa, cheios de colares,
descalços e com calças coloridas. O figurino, criado pela irmã do José, Maria
Mynssen, era composto de seis calças, uma de cada cor, e na barra de cada uma,
um enfeite com as cinco cores restantes. Quem tinha cabelo liso deixava
compridão. Robertinho Silva, negro, deixou black power. E até Milton
Nascimento, que vivia sério e de smoking, mudou. “Teve um momento em que o
Milton psicodelizou-se”, lembra Tavito. Adotou o visual cabelão e, se já era
considerado um gênio da MPB, quis mostrar que também entendia de rock.
“Foi uma ousadia isso, e foi um absoluto sucesso. O Milton fazendo
um negócio absolutamente inesperado. Aquela banda tinha uma coisa, um
comportamento, um show!”, recorda Zé Rodrix. E chocavam. Na época, Milton já
era considerado um grande nome da MPB e vê-lo naquela atitude rock’n roll
abismava os setores mais conservadores da música brasileira. “As pessoas
falavam ‘como é que pode? Um gênio da mpb tocando guitarras... fazendo rock?”,
diz Zé.
Certa noite, durante a temporada no Sucata, Milton pegou o violão
e disse:
- Hoje faz 11 anos que morreu Villa-Lobos. Esse show é uma
homenagem a ele.
Então, o escritor Paulo Mendes de Campos, que estava numa mesa de
canto na platéia, berrou:
- Não parece!
E Milton, desafiador:
- Não parece, mas é.
Naquela noite, a banda tocou com mais gana do que nunca.
Musicalmente, apesar da diferença na formação, já havia unidade e
troca de conhecimento. Robertinho Silva lembra que não conhecia nada de rock e,
depois de ser apresentado a Jimi Hendrix por Tavito, virou fã. Milton também
abriu os horizontes: “a gente combinava muito musicalmente e o som que fazíamos
trazia muitos elementos de rock, pop, blues. Foi uma realização que deu uma
exata visão de que eu não tinha um gênero específico de música, mas sim, que na
minha música, cabia todo tipo de coisa”.
Milton Nascimento e o Som Imaginário
som imáginário | 71
Com shows lotados todas as noites, a banda agradava imprensa e
público. Nelson Motta, jornalista musical e na época produtor da Philips, assim
lembra do Som Imaginário: “Som Imaginário era uma banda fabulosa, fa-bu-lo-sa.
Grandes músicos que tocavam com Milton Nascimento. O Milton acho que foi um dos
artistas brasileiros que mais entrou em rock no inicio dos anos 70”.
No final do ano, Milton foi aos EUA gravar com o jazzista Wayne
Shorter e a banda começa a acompanhar uma temporada de Gal Costa. “Aos poucos”,
lembra Wagner Tiso, “a gente foi assumindo o nome Som Imaginário como nome da
banda”.
* * *
Frederyko, o Fredera, era estudante de Letras e exímio
guitarrista. Veio de família de músicos e largou a faculdade em 1968, aos 23
anos, para viver de música. Em meados de 1970, foi convidado por Wagner Tiso
para integrar o Som Imaginário. “Eu senti que faltava alguém pra solar, porque
o Tavito é um guitarrista de centro, tocava guitarra de doze cordas. Mas a
música da época pedia guitarra distorcida”, justifica Wagner. Para Milton
Nascimento, junção das guitarras de Tavito e Fredera foi o ponto alto na
formação do Som Imaginário. Outro integrante que se acoplou ao time foi Naná
Vasconcelos, que substituiu Laudir de Oliveira.
Ainda em 1970, o Som Imaginário foi convidado pela Odeon para
gravar o primeiro disco. A salada de formações musicais da banda deu origem a
um dos mais supreendentes registros sonoros do desbunde: o LP Som Imaginário,
psicodélico, maluco e experimental como seus autores. A banda se dividia em dois
grupos: os jazzistas (Wagner, Robertinho e Luís Alves) e os roqueiros, (Zé
Rodrix, Tavito e agora, Fredera), que se entenderam bem musicalmente pela
liberdade criativa que tinham na gravação. “Era um grupo que tinha muito
talento, muita capacidade. E nós fomos o único grupo no Brasil que praticou
música aleatória”, define Fredera.
“Nosso experimentalismo era amplo. Porque a gente tinha influência
de tudo, do baião, do bolero, do jazz, do samba canção. Era tudo jogado e
fazíamos um som que a época pedia”, lembra Wagner. No processo de composição,
eram Zé Rodrix e Fredera que faziam as letras – Fredera diz que a música
“Sábado”, deste disco, foi psicografada. O pianista, Tiso, era o responsável
pelos arranjos do disco. Mas, com todos os membros da banda tocando juntos e
alucinados no estúdio de gravação, todo mundo acabava dando algum palpite. “O
processo de criação era o mais despregado possível. Até porque as coisas eram
feitas coletivamente, a gente não sabia como, se um falava ‘ah, eu tenho uma
música aqui, vamos fazer essa? ’ As pessoas embarcavam na brincadeira. Era uma
bela e deliciosa brincadeira”, diz Zé Rodrix.
A gravadora deu uma liberdade surpreendente para o time de jovens
músicos. A Odeon tinha um compilado de artistas comerciais e um de alternativos.
O Som Imaginário, claro, ficava na segunda categoria, que interessava mais à
gravadora por experimentar e dar renome, e não por vender discos. O diretor
artístico era Milton Miranda, que colocava um arsenal de possibilidades sonoras
nas mãos dos garotos do Som Imaginário. “Eram linguagens que a gente estava
experimentando. Não havia compromisso com o ‘tem que acertar, tem que vender,
tem que ter sucesso, tem que tocar na rádio’. As gravadoras na época tinham
dinheiro suficiente pra fazer todas as experiências e ver o que ia dar certo”,
explica Zé Rodrix.
“No Nepal, tudo é
barato
No Nepal tudo é
muito barato
No Nepal o
pensamento é livre
E os sinais da
rua sempre abertos”
“Nepal”, do disco Som Imaginário, de 1971
Eram experiências libertárias e de uma explosão de criatividade -
se não lisérgicas, canábicas ao extremo. Durante uma gravação de metais, rolou
um baseado muito, muito forte. “Foi a maior loucura da minha vida aquilo ali,
dentro do estúdio. Todo mundo louco tocando... vamos gravar. Tava difícil até
de cantar, o bagulho era tão forte que ficava todo mundo de boca seca, não
vinha saliva, a gente ficava com dificuldade de cantar, era uma zoeira”, lembra
Fredera. Na gravação da faixa “Nepal”, que começa com dois minutos de barulhos,
gritaria e sons estranhos, o guitarrista diz que dá para ouvir “nego tossindo,
todo mundo louco pra caralho”. Wagner define o som do grupo como “uma música
louca, servida pelo hippismo, pela psicodelia e pelas drogas da época”.
* * *
Nessa época, Zé Rodrix e Tavito moravam juntos, em uma espécie de
comunidade com o guitarrista Marco Antônio Araújo. O trio constituía a “Família
Matadouro”, devido à enorme quantidade de mocinhas arrebatadas por eles.
Funcionavam como um relógio: os músicos dormiam das 6h às 10h da manhã, iam à
praia, em Copacabana; voltavam da praia, normalmente com uma garota, e dormiam
até as 18h. Acordavam, tomavam banho e iam para os shows, e depois seguiam para
o Sachinhas, de onde só saíam às 6h da manhã. Em casa, só andavam nus. Para ter
algum controle, penduravam avisos como “nesta cama é proibido trepar”. Às
vezes, doidões, passavam o dia todo desenhando. E sempre esqueciam de pagar a
conta de luz. Um dia, tomaram um ácido e a luz foi cortada; acenderam um
lampião e ficou a família toda viajando ao som de The Band. Em outra ocasião,
foram fazer turnê em BH por uma semana. Na volta, quando eles chegaram no hall
do apartamento, deram de cara com uma desagradável surpresa. “Quando a gente
olha, tinha vermes saindo pela porta. Uma trilha que ia até a geladeira. Tinha
acabado a luz e na geladeira apodreceu bife, carne”, lembra Zé Rodrix.
“Sábado vou à
festa numa nuvem de algodão
E entre estrelas
vou abrir meu coração
E vou encher de
vagalumes meu cabelo e respirar o ar do céu, vou
Eu quero o céu e
vou com guizos nos sapatos,
minha roupa em
farrapos coloridos vou passar”
“Sábado”, do disco Som Imaginário, de 1970
Um dia, Tavito e Zé se deram conta que Marco Antônio tinha sumido.
“Sumiu, sumiu, ficamos três dias sem saber dele, começou a dar aquele medo, por
mais despreocupados que fôssemos. Então quando descobriram, ele tinha ido pro
Jardim Botânico, ficou três dias, achando a vida um espetáculo, aquela coisa”,
lembra Tavito.
No Som Imaginário, todos tomaram ácido. Wagner Tiso diz que era
uma coisa mais para os shows, que não usava a droga para compor. Já Fredera
assume que psicografou algumas músicas, especialmente por estar com o lado
direito do cérebro aberto – no caso dele, mais pela Cannabis do que pelo LSD.
Zé Rodrix tomou duas vezes, e diz que “era do bom”: “vinha da Califórnia. Era
uma coisinha, parecia um grafitezinho sextavado cor de laranja, e dava doze
horas de viagem”.
No contexto do Som Imaginário, as drogas eram usadas como
indutoras de pensamento. “Era uma coisa muito limpa, muito pura. A gente era
psicodélico ao vestir, e era psicodélico ao pensar, era um estado de espírito”,
define Tavito. Os músicos acreditavam que podiam mudar o mundo – e, à maneira
deles, a expansão de pensamento, os trejeitos, o som e as conversas eram as
maneiras de fazer isso. Milton Nascimento diz que o grupo tinha liberdade de
pensamento político “sob o efeito de alguma magia, com tendência à rebeldia”.
“Nós éramos psicodélicos por opção, por crença. Era um reflexo de nossa atitude
perante o que acontecia no Brasil e no mundo”, sintetiza.
O desbunde das gravações e dos shows era o mesmo da vida. Para
eles, após o que Zé Rodrix chama de “a grande derrota do poder jovem”, no ano
de 1968, a saída foi a criatividade, a expansão de consciência. E tinham a
percepção de que estavam vivendo uma nova sociedade, sem defini-la como
contracultura. Pelo contrário, o lance deles era assimilar as culturas, sem
pré-julgamento, conversando e filosofando muito. “É incrível esse negócio. Você
acreditava piamente em paz e amor, mesmo. A gente vivia dessa maneira”, resume
Tavito.
* * *
Nos palcos, o Som Imaginário alcançava seu esplendor psicodélico.
A começar, porque era ali que Wagner Tiso entrava na onda de seus companheiros
mais doidões. Depois, porque era um espaço aberto para experimentações, sempre
com uma platéia de hippies alucinados pronta para desbundar. Quase sempre, os
shows começavam com minutos e minutos de experimentações, que iam convergendo
até tornarem-se uma música do grupo. Para Wagner, o grupo se comportava “meio
mal nos shows”: “se comportar era um pouco desafiante. Aquele público esperando
uma música que ouviu no disco e a gente fazia uma coisa diferente, a gente
fazia sons que incomodavam a platéia”.
No palco Robertinho fazia efeitos na bateria, Luís entrava com
harmônicos no baixo, Zé Rodrix fazendo barulhinhos com a flauta e Fredera,
barulho com a guitarra. A introdução, programada para durar 30 segundos, se
estendia para cinco minutos. “Ia começando aquele som completamente maluco,
piano aleatório e órgão, aquelas ondas. De repente, lá no meio a gente se
olhava, e um começava a puxar uma música”, lembra o guitarrista. Então, fumavam
um baseado e começava um som, com todos doidões. “O arranjo inexistia. Alguém
começava a tocar uma nota, alguém fazia uma coisa em torno, outra nota surgia,
a bateria tocava livre, e ia assim até se tornar uma musica”, recorda Wagner.
“Feira Moderna,
um convite sensual
Oh telefonista se
a distância já morreu, o meu coração é velho
O meu coração é
morto
E eu nem li o
jornal
Nessa caverna o
convite é igual
Oh telefonista a
palavra já morreu
Independência ou
morte
Descansa em berço
forte,
A paz na terra,
Amém.”
“Feira moderna”, do disco Som Imaginário,
1970
No V Festival da Canção, em outubro de 1970, a banda participou
com “Feira Moderna”, música de Fernando Brant, Beto Guedes e Lô Borges gravada
no primeiro LP. Foram classificados, mas nas quartas-de-final a banda resolve
adotar uma postura mais malcriada: “a gente não tocou a música. A gente ficou
fazendo um acorde só. Um acorde e duas batidas de baixo”, conta Wagner.
Terminaram classificados em 8º lugar.
Logo após o final da turnê com Milton, a banda foi acompanhar Gal
Costa na temporada do show Deixa Sangrar, no Teatro Opinião. Além de ser
considerado um marco na carreira da cantora, o show também projetou o Som
Imaginário e levou a banda para seguidas temporadas pelo país. Mais
psicodélicos do que nunca, os músicos apostavam nos figurinos e atitudes
bizarras. Em uma temporada no Teatro Vereda, que ficava no centro de São Paulo,
Fredera entrou um dia vestido de menina estudante. No outro, o guitarrista
obrigou Robertinho Silva a entrar no palco vestido de noiva. “Ele alugou com
véu, grinalda e tudo. E fui descalço”, lembra o baterista. Zé Rodrix se
divertia com uma máquina de escrever que não funcionava. E foi nesta temporada,
durante a turnê com a Gal em Goiânia, que Zé Rodrix e Tavito compuseram “Casa
no campo”.
Em um sábado – dia em que Robertinho Silva não gostava de fazer
shows porque “quem não tinha nada a ver acabava indo no show, enchia de madame”
a banda entrou no palco vestida com um terno cinza brilhante. O figurino era o
mesmo da antiga banda de Robertinho e Fredera, Impacto 8, mas a performance
não. “Tocávamos alto pra cacete, as madames colocavam a mão no ouvido. As
pessoas não sabiam se riam ou o quê”, conta Robertinho.
“Você só
precisava da taça de ouro
Que você só viu
por detrás das vitrines
Você precisava
beber nessa taça
Que você pagou
com o sangue que nela derreteu”
“Hey man”, do disco Som Imaginário, 1970
O Som Imaginário também participou do Festival de Guarapari, o
famoso Woodstock brasileiro. Os desbundados de todo o país se alvoroçaram para
assistir ao encontro das bandas que faziam rock no país – mas, pela forte ação
de repressão da polícia federal, o público foi pequeno. Mesmo assim, para a
banda, foi uma maravilha. “Era uma sensação estar fazendo aquilo. Para nós, era
como se estivéssemos tocando em Woodstock”, diz Tavito.
Na época, o grupo trabalhou com o empresário Marinaldo Guimarães,
ícone das bandas bicho-grilo. Marinaldo foi o responsável por shows malucos e
cenografias insólitas, como em uma série no Teatro da Praia, cujo cenário eram
armações de andaime espalhadas. O empresário também criou um circuito
alternativo de shows nas periferias cariocas, para um público que não entendia
nada. “Tinha um abismo entre a gente e o público. A periferia já estava indo
num som mais crioulo”, lembra Zé Rodrix. Mas o circuito criado por Marinaldo
não foi em vão: mais tarde, foram naqueles palcos que começou a cena do funk
carioca.
O empresário também era conhecido por “dar chapéu”. Zé Rodrix
conta que o grupo começou a fazer muitos shows e não receber. O truque era o
seguinte: Marinaldo pagava os shows com cheques sem fundo. Mas o banco do
empresário era Bradesco, mesma agência de Zé, e em um dia, quando foi avisado
pelo caixa que a conta de Marinaldo não tinha fundo pra descontar o cheque, Zé
Rodrix disse:
- Pelo amor de Deus, me faz um favor? Esse cara não tem fundo
porque não tem nada?
- Não tem fundo suficiente. É um cheque de 120 mil cruzeiros,
estão faltando oito mil. – respondeu o caixa.
E Zé Rodrix, muito espertinho, mandou:
- Deposita oito mil cruzeiros na conta dele então.
O caixa obedeceu. E Zé:
- Agora, ele tem fundo? Me paga o cheque dele então.
Quando descobriu, conta Zé, Marinaldo entrou em parafuso. E
perguntou:
- Como você recebeu?
- Ué, você me deu o cheque, cheguei lá e o cara me pagou. –
respondeu Zé, se fazendo de mané.
- Mas é que...
- Mas é que o que, Marinaldo? Eu não tô entendendo o seu
nervosismo. O que aconteceu, o dinheiro não era seu? Eu to achando uma coisa
estranha, Marinaldo.
E Zé, que preferia perder oito a 120 mil, nunca mais foi
empresariado por Marinaldo.
Muita loucura, muito desbunde. Mas era 1970, o presidente do
Brasil era Emílio Garrastazu Médici, e estava em curso a época mais tensa da
ditadura. Os integrantes do Som Imaginário foram censurados e fichados – para
poderem trabalhar, tinham que apresentar a carteirinha da censura.
O episódio mais dramático foi na rodoviária de Belo Horizonte.
Foram todos em cana, segundo Tavito, por causa das roupas que usavam.
Robertinho levou a pior: ele estava com as ferragens e os equipamentos da
bateria. “Porque ele era pretinho, pequeno, todo mundo achava que aquilo era
coisa roubada”, lembra Tavito.
Apesar da repressão, o grupo foi conquistando espaço na mídia. Em
geral, a crítica de música odiava. O temido Ezequiel Neves, crítico de rock do
JT na época, odiou. Classifica o Som Imaginário como “bad trip”. Já Nelson
Motta amou, e até convidou o grupo para participar do Som Livre Exportação,
programa da Globo dedicado aos novos talentos. Para Zé Rodrix, as pessoas
gostavam porque “não conseguiam resistir ao som”. Wagner Tiso lembra que a
imprensa, em geral, gostava da atitude do grupo tocando – mas havia uma certa
resistência, até pelo ecletismo e, talvez, pela falta de identidade do grupo.
Em 1971, o Som Imaginário voltou a tocar com Milton Nascimento,
mais loucos do que nunca. Nélio Rodrigues, carioca e acompanhante da cena
musical da época, assistiu um show no começo do ano. Era a gravação do programa
“É Onda”, da TV Tupi. O palco foi montado na Urca, perto da sede da TV, e uma
pequena platéia de cabeludos se aglomerou na praia para ver a apresentação
gratuita. Milton começou cantando “A felicidade”. No meio da apresentação, um
grupo começou a jogar areia uns nos outros, criando um tumulto na platéia.
Milton abandonou o show furioso. Nélio viu tudo, e ao seu lado, estava Ronnie
Von indignado com o comportamento da platéia.
O show foi transferido para um estúdio da TV. Nélio lembra que,
com Milton, tocaram “Para Lennon e McCartney” e outra música, mas não se
recorda qual. Do próprio Som Imaginário, tocaram “Feira Moderna” e “Sábado”,
com Fredera vestindo uma túnica indiana. “Achei o máximo. ‘Sábado eu vou a uma
festa numa nuvem de algodão’... talvez tenha sido numa nuvem de maconha mesmo”,
lembra o fã, que viu só um pedaço do show, mas saiu satisfeitíssimo.
“Você tem que
saber
Da coisa que
passei
Do som da
curtição
Do som daquele
comercial
Senão você vive
fora do ar, só vive fora do ar”
Treho de “Você tem que saber”, do disco Som
Imaginário, de 1971
O ano de 1971 não era o melhor momento para acompanhar Milton
Nascimento. O músico passava por uma fase difícil e as brigas eram constantes.
Milton estava bebendo muito, passando por um processo autodestrutivo, e os
companheiros concordam que acompanhá-lo não era uma tarefa fácil. “Havia uma
grande ligação, mas essa ligação logo se deteriorou por problemas de
relacionamento”, define Fredera.
Um dia, depois de uma briga antes de um show, Zé Rodrix pegou as
coisas, enfiou numa mala vermelha e saiu do grupo. “Você tinha o show pra fazer
e de repente você olhava pra cara dele e ele estava completamente bêbado, e aí
o show não acontecia. Isso foi indo, até que chegou uma hora que eu não agüentava
mais”, lembra Zé. Tavito concorda que a vida de acompanhante do Milton “não era
mole”, apesar de toda a influência musical que ele exercia sobre todos os
músicos. “A gente nunca conseguiu trabalhar com o Milton, assim, com o padrão
profissional de cair na estrada juntos. Era um show aqui, outro ali, e cada um
era um acontecimento na vida dele”, diz Fredera.
Depois da saída de Zé Rodrix, o grupo entrou em estúdio para
gravar o segundo disco. Desta vez, o processo criativo foi diferente: houve uma
clara liderança e preponderância de
Fredera sobre os outros compositores. Para Tavito, o Som
Imaginário, com o hibridismo e ecletismo característicos, termina quando o
companheiro sai. “O Zé é um pivô, um coringa. Porque ele pegou todo o talento
do Wagner, o talento de todos nós, e canalizou numa coisa híbrida. Depois, isso
acabou. Porque tinha dois indivíduos fortes que eram o Fredera e o Wagner, que
queriam colocar as suas composições. Eu passei por isso e sei exatamente como
funcionou”.
Som Imaginário saiu em 1971 e tem a cara de Fredera, que compôs
quase todas as músicas. “O primeiro disco era mais uma coisa de rock do
momento. O segundo teve uma influência maior de rock sinfônico, de rock
progressivo da época”, define Wagner Tiso. O segundo disco abre com “Cenouras”,
composição de Fredera com letra absolutamente psicodélica:
“Eu hoje tenho um
assunto delicado pra falar com você
Eu muito tenho
meditado sobre a vida que você esqueceu
Você está com a
cabeça virada para o nada
E não procura nem
saber o que eu penso e o que faço
Eu acredito que
você ainda tem uma pequena chance
E eu encontrei a
solução pro seu caso e vou propor um tratamento pra você melhorar:
Eu vou plantar
cenouras... Na sua cabeça”
“Cenouras”, do disco Som Imaginário, de 1971
“Cenouras é muito boa. Se você olha aquela fusão, aquela função
literária ali, ela é completamente paranóica, doida varrida”, define Tavito.
“Você tem que saber”, “Gogó (O Alívio Rococó)”, “Ascenso”, “Salvação pela
macrobiótica” (que fala sobre um jantar animado - em uma música lenta, em tom
dramático, com uma parte que declama a ojeriza aos enlatados e semelhantes),
“Ué”, “Xmas blues” e “A nova estrela” também compõem o repertório do disco.
Em 1972, o clima no Som Imaginário estava pesado. Durante as
gravações do terceiro álbum, Matança do Porco, surgiram os desentendimentos
entre Wagner Tiso e Fredera. “O que eu queria mesmo era militância política
através da cultura, e isso o Wagner não queria. O Wagner queria dinheiro e
fama... e mulheres”, alfineta o guitarrista, que acabou sendo expulso do grupo
antes mesmo do lançamento.
O terceiro disco acabou saindo com a cara do Wagner Tiso.
Instrumental, puxa para um progressivo, ora leve, ora pesadão, com instrumentos
trabalhados e arranjos complexos, músicas viajantes e longuíssimas. Há uma
música composta coletivamente; as outras são de Wagner. O arranjador diz que
optou por fazer um disco instrumental porque era a hora da banda “se mostrar
como instrumentista”. “Era um grupo extremamente bom. A gente tinha que mostrar
isso, porque a gente tinha acomodado. A música com letra te leva à acomodação,
porque o principal é o que você tá dizendo. Eu quis mostrar que não, que
principal é o que se está tocando”.
“Os homens
sabidos, os sabedores
Garantem que
surgiu uma nova estrela
É o tempo da nova
estrela (...)
A estrela dita um
novo tempo
E convoca
pensadores a tecer um novo tempo”
“A nova estrela”, do disco Som Imaginário,
1971
Apesar de ter participado como solista no terceiro disco, Fredera
odeia a criação: “o Som Imaginário, é na verdade, os dois primeiros discos. O
resto é merda”. Para Wagner, foi o exato contrário. O arranjador acredita que o
terceiro disco, e suas decorrências, foram o ponto alto da banda. Antes, diz
ele, a banda fazia shows como acompanhante, e não como Som Imaginário. “A
partir de Matança do Porco o grupo existiu de verdade. Foi o momento que o
grupo se soltou”, define.
Logo depois do lançamento do disco, Tavito sai da banda e muda
para São Paulo. Robertinho Silva também sai e se muda para os EUA, para
acompanhar Milton Nascimento. Wagner Tiso chama os companheiros Toninho Horta,
guitarrista, e Nivaldo Ornellas para os instrumentos de sopro. Com essa
formação, o grupo gravou o disco Milagre dos Peixes com Milton Nascimento, a
partir de uma apresentação ao vivo em 1973. Depois, não houve mais gravações;
só shows “maluquíssimos”, como define Wagner Tiso.
Em 1975, o grupo fez seu show derradeiro no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro. Algumas pessoas da platéia gravaram a apresentação, que
Wagner lembra com carinho. “O show é louquíssimo, mas tem uma beleza e uma
coragem muito grande. Corajosamente, tocando pra fora mesmo, criando ao vivo”.
Em 1976, Wagner Tiso muda para os Estados Unidos e coloca, de vez, um ponto
final no Som Imaginário.
* * *
Depois de sair do Som Imaginário, Zé Rodrix foi contratado pela
mesma gravadora, Odeon. Em 1972, “Casa no campo” foi imortalizada na voz de
Elis Regina, e virou hino bicho-grilo e ícone de uma época. Depois, se lança no
trio Sá, Rodrix e Guarabyra e vira estradeiro. Em 1976, lança seu maior
sucesso, o disco Sou latino-americano.
Tavito veio para São Paulo e vivia gravando com seu violão de 12
cordas. Fez sucesso com “Rua Ramalhete”. Recém casado, sua mulher não aguentou
a vida paulistana e fez o casal voltar para o Rio. Lá, Tavito criou sua
bem-sucedida empresa de jingles em que trabalha até hoje.
Depois de sair do Som Imaginário, Fredera teve que fugir do Rio de
Janeiro por ter abrigado uma guerrilheira. Ficou escondido em Belo Horizonte
até 1973, quando volta ao Rio a convite de Wagner para acompanhar um roqueiro
então iniciante, Raul Seixas. Fredera era chamado por Raul de “Fredirico” e já
estava enlouquecido na cocaína, como seus companheiros Wagner e o resto da
banda. Antes dos shows, cheiravam no camarote e sempre escondiam de Raul. Um
dia, numa temporada no Teatro Tereza Raquel, no Rio, resolveram mostrar.
Estavam Fredera, Wagner, Luís Carlos, o bateirista, e o baixista
Milton Brotero cheirando no minúsculo camarote. Normalmente, Raul ficava
sozinho em um camarote maior. Neste dia, bateu na porta do camarote da banda.
- Fredirico?
Luís estava esticando as fileiras.
- E aí? – respondeu Fredera.
E Raul, olhando para a droga:
- Que que é isso?
Luís olhou pra ele e falou:
- Co-ca-í-na.
- Como é que faz isso?
- A gente cheira.
- Mas vocês vão tocar?
E Fredera:
- Ué, toda noite a gente toca... tá afim?
- Tô.
Fredera ensinou como se faz e botou no nariz de Raul. “Botei a
primeira na minha carteira de músico, que eu tenho aí até hoje, e o Raul
cheirou e morreu disso. E eu estou aqui”.
Robertinho Silva, depois de gravar Matança do Porco, foi para os
EUA gravar com Milton, Wagner e Wayne Shorter. Depois, voltou ao Brasil e
retornou aos EUA para fazer carreira.
Ficou quatro anos, mas não se adaptou ao sistema americano e
voltou. Em 78 começou a carreira solo. Hoje, tem seis discos gravados e uma
escola de música. Ficou mais 28 anos tocando com Milton Nascimento.
Wagner Tiso começou uma longa carreira musical. Fez arranjos para
Gonzaguinha, Johnny Alf e para o próprio Milton, com quem toca até hoje. Em
2007, lançou o especial “Wagner Tiso 60 anos: um Som Imaginário”. O show começa
com o Som Imaginário (apenas com faixas do terceiro disco), e conta com a
participação dos ex-companheiros Robertinho Silva e Luiz Alves, além de Nivaldo
Ornellas, Toninho Horta e do próprio Milton Nascimento.
Naná Vasconcelos conquistou sólida carreira internacional como
percussionista. Gravou 28 discos. Luís Alves foi para os EUA, e na volta ao
Brasil, se dedicou ao jazz. Chegou a acompanhar Tom Jobim, Gal Costa, Chico
Buarque e Sivuca.
Quase quarenta anos depois, a visão que eles têm da banda é
diretamente proporcional à experiência que tiveram nela. A turma do rock – Zé
Rodrix, Tavito e Fredera – acham que, depois que saíram, a banda acabou. Ainda
guardam uma certa mágoa de Wagner Tiso, que “se tornou dono do nome Som
Imaginário”. “Ele está contando a história do Som Imaginário exatamente como
ela não foi”, desabafa Zé Rodrix. “Ele está fazendo uma bobagem, que é
dispensar a raiz do que foi realmente o Som Imaginário”, completa Tavito.
Fredera acredita que a banda, ao lado de Os Mutantes, foi a única
realmente psicodélica no país. E tem mais, o mérito é ainda maior porque não
contou com a ajuda de Rogério Duprat nas maluquices. Mas põe uma dúvida na
importância desse período, hoje, em sua vida. “A gente podia brincar de mil
maneiras, curtir de mil maneiras, inventar mil loucuras, e a gente pensava que
isso era evolução cultural. Não era. Isso era um desvão, um viés. Não ficou
praticamente coisa alguma, dessa fase, de consistente”.
Em relação a Milton Nascimento, apesar dos percalços, todos
concordam sobre a
importância do músico na composição da banda. “Milton é um homem
que tem um grande alcance musical. Ele vivia essa verticalidade da criação. Ele
era um improvisador. O Milton foi músico, contrabaixista, é outra coisa. O
resto não. Havia a tirania semi-oculta, subliminar, no sentido de fabricar o
produto dentro do formato que interesse à gravadora e ao mercado”, define
Fredera. Para ele, o Som Imaginário só existiu porque Milton forneceu essa
possibilidade. Hoje, o núcleo roqueiro do Som Imaginário tem pouco ou nenhum
contato com Milton Nascimento.
Tavito e Zé Rodrix vivem em São Paulo e são amigos até hoje. Não
vêem muito Fredera, que vive em Alfenas, no sul de Minas Gerais. Levando uma
vida tranqüila ao lado de sua esposa atual, o guitarrista largou o rock há
tempos e hoje, revendo o psicodelismo de sua época de Som Imaginário, acredita
que tudo não passou “de um golpe genial para abortar uma tomada da consciência
mundial”: “quais são as diversas formas de intervir em alguma coisa? Em
primeiro lugar, corrompendo. A psicodelia foi uma iniciativa concebida dentro
do sistema de segurança do império, pra fazer frente ao avanço de uma tomada de
consciência mundial em relação ao imperialismo, sob todos os aspectos. Há vinte
e um anos eu soube de tudo, me deram um insight. Mas o pessoal que sabe disso,
uma ínfima minoria, não pode abrir a boca, porque se abrir dança, e dança
correndo risco de eliminação pessoal, etc”. Apesar do pouco contato, Tavito se
declara louco pelo antigo companheiro de banda: “ele nem sabe o quanto eu gosto
das coisas que ele escreve”.
som imáginário | 91
A paz, o amor,
Voccê
“I like to see
The rain or sunshine
To be free like the
birds”
(”Thank
you my God”, do disco Geração Bendita, de 1971)
O ano era 1968. Carlos Koller era um hippie que já tinha rodado o
mundo e resolveu se instalar na pacata Nova Friburgo. Encravada na região
serrana do estado do Rio de Janeiro, a cidade foi fundada em 1818, quando o Rei
D. João VI mandou para lá algumas centenas de famílias suíças. Friburgo recebeu
levas de imigrantes europeus e, em meados daquela década de 60, já contava com
um parque industrial, uma economia próspera e noventa mil habitantes. O Colégio
Anchieta, jesuíta e rigoroso, era onde a nova geração de garotos friburguenses
de boa família se formava – até aparecerem os hippies e o rock´n roll.
“I like to see
The rain or sunshine
To be free like the birds”
”Thank you my God”, do disco Geração
Bendita, de 1971
O colégio funcionava em um conjunto monumental de prédios. Ali, só
estudavam garotos – em internato, para formação de padres, ou em externato. Os
meninos de boa família contrastavam com os malucos do Colégio Nova Friburgo, da
Fundação Getúlio Vargas. Para a “Fundação”, iam os filhos renegados de famílias
abastadas:
“Quando o cara se constituía em problema, em persona non grata
para sua família, a Fundação era o seu destino”, lembra José Caetano, estudante
certinho do Anchieta. Os alunos da “Fundação” eram quase sempre os responsáveis
pelas bagunças e problemas que aconteciam em Nova Friburgo. Os dois colégios
competiam em tudo – esporte, notas e até música, pois cada um tinha a sua banda
de baile, que concorriam para tocar nos clubes e nas festas.
Os garotos certinhos do Colégio Friburgo, de
cabelo tigela
A banda do Colégio Anchieta chamava-se 2000 Volts. Era formada
pelos irmãos Fernando, baterista, e Ramon, contrabaixista, além dos amigos
Caetano, na guitarra-solo, e Nando, na guitarra base. “Ocorreu, então, que num
dos ensaios o Ramon, que usava um aparelho para correção dentária, levou um
tremendo choque elétrico junto ao microfone”, lembra Caetano. O garoto ainda
exclamou: “Parece que eu levei um choque de mais de 2000 Volts!”, e assim foi
batizado o grupo, que ensaiava na casa da Dona Gilda e do Fernando, os pais dos
irmãos. O repertório consistia, basicamente, em Beatles e Jovem Guarda – Renato
e seus Blue Caps, Ronnie Von, Golden Boys, Roberto e Erasmo Carlos.
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2000 Volts em um dos ensaios
Conforme os ensaios foram ficando mais freqüentes, os garotos
resolveram procurar um lugar para tocar dentro do colégio. É claro que, de
cara, os jesuítas responsáveis pela administração conservadora declinaram o
pedido. Entretanto, o “Coordenador Spencer” simpatizou com a causa e resolveu
ajudá-los. Seu primeiro “show” aconteceu em uma festa de aniversário onde,
ainda envergonhados, esboçavam algum rock´n roll com instrumentos emprestados.
Aos poucos, foram pintando mais e mais convites para animar festas e bailes e a
banda foi criando confiança, movida a cuba libre e hi-fi.
* * *
Enquanto os garotos certinhos do Anchieta agitavam as noites com o
2000 Volts, Nova Friburgo virou um campo de atração de malucos. Carlos Kohler
fundou em seu sítio a comunidade Quiabo’s, que disputava com a Abóbora’s para
se tornar o maior destino de hippies do Brasil inteiro. Um recorte de jornal da
época, guardado por Caetano, assim conta a história:
“Depois de rodar o mundo, Carlinhos Kohler resolveu, em 68,
plantar rosas num sítio em Friburgo. Abriu uma loja de flores, fechou logo
depois: achava que não se deviam vender rosas; não eram produto para comércio.
Resolveu ir morar no sítio, abriu uma vendinha de roça, onde oferecia produtos
da lavoura, ‘coisas para comer’.
Apareceu um amigo que fazia artesanato no Rio, outros foram
chegando, distribuindo-se pelas duas casas do sítio, que tem 52 mil metros
quadrados. Casas de roça, feitas de pau a pique e telha, sem forro, uma com
cinco e outra com dois quartos, a bomba de água do lado de fora, manual. Um rio
corta o sítio, a cachoeira fica mais embaixo.
Começaram a trabalhar com couro e cobre, que vendiam na feira de
Friburgo. Faziam pequenas exposições, reproduzindo pinturas antigas do Egito e
da Grécia, que às vezes demoravam até cinco meses para ficarem prontas.
Carlinhos diz que foi a fase mais bonita do sítio.
- Havia muita harmonia, os amigos apareciam para visitar a gente,
todo mundo sem grilos.
No final dos anos 60, brasileiros de vários cantos do país, e
estrangeiros, constituíram um grupo de 68 pessoas que se estabeleceram nos
arredores da cidade de Nova Friburgo, com o propósito de vivenciar um sistema
baseado na natureza e no trabalho com o artesanato”.
Os hippies moravam afastados, mas iam ao centro de Friburgo vender
artesanato e flores. Aos poucos, os garotos certinhos do Anchieta – já cansados
das missas em latim e do conservadorismo extremo – foram se encantando por
aquele universo. “Vinham grupos de hippies do Rio, se alojavam lá, tocavam
música ate tarde. Eu achava aquilo legal, cada um fazia o que queria, existia
uma liberdade, dormíamos tarde depois de tocar”, lembra Sérgio
spectrum | 97
Regly, que fazia parte da turminha. No começo, o que era só
diversão esparsa acabou virando rotina. Os meninos iam à comunidade, dormiam
por lá, acordavam, iam almoçar com os pais na cidade e, no fim da tarde,
voltavam à Quiabo’s de jipe. As famílias, é claro, achavam tudo muito estranho.
Os pais de Sérgio e Caetano eram amigos e discutiam entre si o que é que
aqueles meninos crescidos a pão-de-ló estavam aprontando. “Eles criticavam:
‘isso é da juventude, isso é meio perigoso, vocês estão deixando o estudo de
lado, estão estragando a saúde’, e a gente ‘não tem problema não’. Sempre se
preocupavam”. Com os cabelos mais compridos, novas idéias e um universo musical
inexplorado pela frente, o 2000 Volts virou coisa do passado.
***
Não era fácil para uma cidade como Nova Friburgo abraçar aqueles
malucos – mesmo que fossem dos mais tradicionais filhos da cidade. Os garotos
viviam na pindaíba. Tiravam os sons em uma vitrola portátil. “Ouvíamos numa
monofone, era sacrifício, para ouvir a pronuncia do inglês a gente tinha quase
que entrar no disco”, lembra Sérgio. Com muito esforço, conseguiram comprar
instrumentos de segunda mão e amplificadores pequenos. Os pais de Caetano
ficavam responsáveis pela avalização dos financiamentos. Apesar de fazerem
muitos shows, quase não viam a cor do dinheiro. Ganhavam sobre a portaria nos
clubes, e a maioria da platéia era sócia e não pagava para entrar.
Ainda assim, os garotos esforçados e bem ensaiadinhos foram
buscando aperfeiçoamento. Fernando saiu da banda; pelo posto de baterista então
passou Tiãozinho, irmão de Caetano, que acabou indo faculdade no Rio de Janeiro
e abandonou a função. Finalmente, Serginho entrou já para a formação
definitiva. “Foi um grande acréscimo à banda naquele momento, devido à
crescente habilidade exigida por conta do aperfeiçoamento dos repertórios. O
Serginho representou um grande avanço no trabalho vocal e nos arranjos e interpretações,
cada vez mais elaborados”, lembra Caetano. Houve, mais tarde, outra
substituição – dessa vez, no posto de baixista. Por problemas de saúde, Ramon
deu lugar a um amigo da turma, Tobi.
“Pelo caminho do
amor eu andei
Pelo caminho do
amor procurei
A Paz, o Amor,
Você ...
Pelo caminho eu
quero encontrar (Liberdade)
Pelo caminho eu
quero abraçar (Liberdade)
Gente da vida que
vive a cantar (Liberdade)
Gente que esquece
que a vida é má (Liberdade)
Pelo, pelo, pelo
caminho do Amor (Liberdade)
Pelo, pelo, pelo
caminho da Paz (Liberdade)
Liberdade,
Liberdade, Liberdade”
(“A paz, o amor, você”, do disco Geração
Bendita, 1971)
Enquanto os cabelos cresciam e os hábitos se liberalizavam, o
repertório foi tornando-se cada vez mais contestador. A Jovem Guarda deu lugar
a Cream, Stones, Led Zeppelin, Simon & Garfunkel, Steppenwolf, Santana. Nos
shows havia poucas músicas brasileiras – “a não ser para agradar estudantes”,
ri Sérgio. Os garotos, que antes concorriam com as outras bandas de baile,
acabaram se diferenciando e se posicionando muito à frente dos conterrâneos.
Com o amadurecimento do grupo, os integrantes sentiram a necessidade de mudar o
nome 2000 Volts, encarado como uma fase infanto-juvenil. Foi um professor de Física
que abriu os olhos dos músicos ao espectro solar, com as sete cores, e os
reportou às sete notas musicais primárias. Com imaginação e, segundo Caetano,
“considerando até a sonoridade e a universalização do termo”, ficou definido
que eles agora se chamariam Spectrum.
* * *
Nas comunidades Quiabo´s e Abóbora´s, tudo corria na mais santa
paz. Tão bem que surgiu a idéia de produzir um filme para documentar e divulgar
o modo de vida hippie. Carlos Bini, um dos moradores, apareceu com uma câmera e
com a idéia na cabeça. Chegaram a gravar alguns curtas em 16mm, até que Carlos
Kohler deu a idéia de filmar um longa. “A gente sempre faz aquilo que sente,
pode ser melhor ou pior, não importa. Nessa época, estava acontecendo Woodstock,
e nós formávamos a única comunidade ‘hippie’ do Brasil”, disse o rapaz a um
jornal local de Friburgo, no mesmo recorte não-identificado guardado por
Caetano. Segundo a reportagem, a idéia inicial era mostrar uma “sociedade
decadente”. “Mas isso não funcionaria. A sociedade não está decadente, ela
sempre foi. Começou a ser a partir do momento em que deixou de ser humana.
Preferimos apresentar a tentativa da comunidade”, explicou Kohler, na mesma
entrevista. Ele e Carlos Bini fecharam o roteiro: um advogado, em meio aos
papéis dos processos, tem um surto e se muda para a comunidade. Vira hippie e
passa a fazer parte da rotina do local, até que uma garota, filha da sociedade
tradicional, se apaixona por ele e os dois vivem uma história de amor.
Na época, doze pessoas moravam na comunidade. Todo mundo parou o
que estava fazendo – fecharam a venda, largaram o artesanato – para se dedicar
inteiramente à produção do filme. Os garotos do Spectrum, responsáveis pela
trilha sonora, também abandonaram os shows e a rotina, já que finalmente
poderiam gravar e ganhariam uma boa projeção no cinema. “Geração Bendita”, o
título escolhido, começou a ser rodado em agosto de 1970. Os equipamentos foram
oferecidos por uma empresa e o orçamento para a execução foi pífio. Normalmente,
um filme era feito com 25 a 30 latas; “Geração Bendita” consumiu apenas 11.
Visual completo para o guitarrista da banda
O Spectrum já tinha um bom material pronto para a trilha sonora e
ainda compuseram mais algumas canções. David, filho de ingleses, se juntou à
turma e colaborou nas composições, especialmente nas em inglês. Kohler e Bini
alugaram os estúdios Todamérica, na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, e
despacharam a moçada para gravar. Com equipamentos
medianos e arranjos de um maestro, o resultado final foi um disco
espetacular de 29 minutos. À primeira audição, o Spectrum se passaria
facilmente por uma banda de rock estrangeira – com belas melodias, guitarra
ultradistorcida e agressiva, além de arranjos vocais bem trabalhados. Um
ouvinte mais atento, em seguida, repara nas letras:
“Caminhando,
caminhando vou
No Quiabo’s vou
chegar
Lá encontro, lá
encontro
Em verdade o meu
lugar
Gente pura prá se
amar
Muita Paz, vou
meditar
Não importa, não
importa
Sexo, cor ou
idade
No Quiabo’s, no
Quiabo’s
Você tem
Liberdade
O astro
intensidade
A flor tem
vaidade”
(“Quiabo´s”, do disco Geração Bendita, de
1971)
“Quiabo´s”, “15 years old”, “Trilha antiga”, “Thank you my God” e
“Pingo é letra”, são rock ‘n’ roll, já pendendo para o hard rock, com guitarras
distorcidas e vocais fortes. “Concerto do Pântano” é instrumental, com wah-wah
e efeitos estranhos, leve, totalmente psicodélica. Gravadas com viola caipira,
as baladas “Mother Nature”, “May you are”, “Tema de amor” e “Maria Imaculada”
são belas melodias. E a última faixa do disco, “A paz, o amor, você” lembra um
luau, com violão e bongôs, no melhor estilo hippie.
* * *
É claro que toda essa farra não passaria desapercebida. A
sociedade de Nova Friburgo já não gostava daquela invasão hiponga. Documentar
aquilo, então, foi demais. O grupo era sistematicamente perseguido pela polícia
local. “Para pronunciar ‘maconha’, tinha que falar baixinho”, lembra Sérgio. O delegado
da cidade, Amil Nei Richard, era o inimigo número um dos hippies. Vestia-se
impecavelmente, de terno branco e chapéu de palha. Quando encontrava os hippies
reunidos em frente à padaria Normandie, fazia questão de demonstrar sua
autoridade.
Em meio à produção de “Geração Bendita”, Nei Richard prendeu todos
os atores e a equipe técnica do filme. O jornal “O dia”, de 27 de novembro de
1970, narrou:
“Ontem, aproveitando-se de uma cena mais audaciosa, onde os
artistas apareciam num jipe psicodélico, de cores berrantes e desenhos
avançadíssimos, o delegado entrou em cena e bradou:
- Corta! Está todo mundo em cana. Ninguém sai de cena. As
representações serão, agora, no xadrez, mas com artistas carecas e todos de
banho tomado, asseados e limpos.
Houve protestos e correrias. O povo vaiou, mas as ordens do
delegado foram integralmente cumpridas”.
Nei Richard trocou as batas indianas por vestimentas normais e
tratou de raspar as cabeleiras e as vastas barbas dos hippies. “Fãs dos artistas
‘hippies’ reuniram-se diante da delegacia e fizeram protesto coletivo contra a
prisão. Alguns, inconformados com a desfiguração fisionômica dos astros e
estrelas, chegaram a ameaçar de depredação a delegacia, sendo contidos a muito
custo pelos policiais. (...) As jovens estrelas do filme todas lindas, de
plástica invejável e linhas aerodinâmicas mostraram-se indignadas com a atitude
policial”, narrou o mesmo jornal. Segundo a reportagem, as atrizes
aerodinâmicas disseram que o delegado foi “quadrado, retrógrado e abusou de sua
autoridade”.
Ouvido pela reportagem, justificou sua atitude dizendo que a
“operação tosquia” aconteceu porque a presença dos cabeludos “causou uma série
de problemas para a cidade”. Nei Richard temia que os hippies fossem responsáveis
por aliciamento de menores e, além de cortar os cabelos, deu um prazo de cinco
dias para os que eram de fora de Friburgo deixarem o local. O diretor Carlos
Bini, segundo a reportagem, entrou com uma ação de perdas e danos contra o
abuso de autoridade do delegado.
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A moçada foi liberada, mas os problemas não terminaram. Depois de
concluídas as filmagens, “Geração Bendita” foi proibido pela censura, com
várias cenas cortadas. Carlos Bini teve que reagrupar toda a equipe para
regravar algumas dessas partes. O nome “Geração Bendita”, censurado, deu lugar
à “É isso aí, bicho”. O resultado final foi lançado em 1972 e anunciado como “O
primeiro filme hippie brasileiro”, “feito em uma comunidade hippie autêntica”.
Entretanto, só é válido pelas histórias de bastidores.
”O homem tingiu
vermelho a terra
O branco, a Paz,
perdeu há muito a guerra
Gente, eu vou me
embora (vou sair por aí)
Vou procurar um
mundo melhor
Prá quem sabe ler
um pingo é letra
Gente, eu vou me
embora (vou sair por aí)
Vou procurar um mundo melhor
...One day a man called John talked about this”
(“Pingo é letra”, do disco Geração Bendita,
de 1971)
A película é uma preciosidade, mas não cinematográfica – os atores
amadores têm uma interpretação risível, a dublagem é malfeita, há vários erros
de seqüência e cenas clichês. Vale destaque para a cena em que o advogado
Carlos, interpretado pelo próprio Bini, surta: ele levanta de sua mesa, em seu
escritório, e sai gritando “Tô maluco! Tô louco”. Enquanto corre, ao fundo,
começa a tocar “Aleluia, aleluia”. Outra cena bizarra é a perseguição hippie a
um porco indefeso. Depois de aprisionado, Carlos dá uma marretada na cabeça do
frágil leitão e o grupo come o bicho com as mãos, se lambuzando na carne tenra
e engordurada. Isso fora os banhos coletivos com todos nus e as festas, em que
a música nunca é sincronizada com a imagem. O filme, mesmo depois de liberado
pela censura, foi um fiasco. Para pagar os Cr$ 300.000 que gastou, Bini teve
que colocar a venda os sítio Quiabo’s e Abóbora’s.
Mesmo após o fiasco, “Geração Bendita – É isso aí, bicho” tem um
enorme valor. A trilha sonora é espetacular e até chamou a atenção do famoso DJ
carioca Big Boy, mas sem chegar a tocar no rádio. Aos poucos, os músicos foram
desestimulados. Depois da gravação do disco, a banda não voltou a se
apresentar. “Aquilo foi desanimando”, lembra Sérgio. Eles chegaram a atuar em
outro filme de Carlos Bini, “Guru das sete cidades”, mas logo depois acabaram.
O dinheiro continuava não entrando e ainda havia prestações de instrumentos
para pagar. “Cada um começou a se definir para o seu lado profissional, e aí a
música foi sendo esquecida e o grupo parou”, diz o baterista.
”Viemos cansados
Por uma estrada
tão antiga
Somos jovens
velhos
Infância perdida
Mocidade violada
Infância perdida”
(“Trilha Antiga”, do disco Geração Bendita,
de 1971)
Cada um dos integrantes foi para o seu lado. Caetano virou
funcionário público, Sérgio projetista industrial, Fernando trabalha com
informática no Rio e David tornou-se pecuarista. Tobi morreu em um acidente de
carro, na década de 90. Os ex-integrantes casaram-se, tiveram filhos, e como a
maioria ainda mora na mesma cidade, mantêm algum contato.
No início do século XXI, os pacatos cidadãos friburguenses foram
surpreendidos por um telefonema: um selo alemão chamado Psychedelic Music
estava interessado no já esquecido trabalho. “O que havia restado para o
funcionário público aposentado José Luiz Caetano, 49 anos, era apenas uma fita
cassete, que ele ouvia em suas viagens de carro pela serra. ‘Chorava de alegria
e tristeza. Sentia um arrepio ao ver a amplitude do trabalho que tínhamos
feito. E tudo se perdera no vento, jogado em alguma prateleira’”, diz José Luiz
em reportagem de Silvio Essinger, no Jornal do Brasil de 14 de fevereiro de
2002.
Na década de 90, o disco do Spectrum havia sido descoberto pelo
pesquisador musical Luiz Antônio Torge, que mantém o site “Rato Laser”. Torge
enviou a fita a Thomas Hartlage, do selo Psychedelic Music, que arregalou os
olhos. “’Fiquei tão impressionado com o som e com as composições que passei um
ano tentando comprar o LP original. Por fim, consegui uma cópia no Brasil, pela
qual paguei US$ 1.500’, diz Hartlage. E a fama de Geração bendita se espalhou.
‘Ele é uma jóia da música psicodélica’, elogia Hans Pokora, autor da série de
livros Record collector dreams, que compila capas de raridades roqueiras do
mundo inteiro. ‘Além de ser ótimo, ele é raro também, o que torna a obra ainda
mais cultuada’, acrescenta Luiz Antônio Torge. ‘E o fato de as músicas não
serem covers de bandas da Europa ou Estados Unidos deixa os colecionadores
loucos’”, narra a reportagem de Silvio Essinger.
Caetano era o único dos músicos que acessava freqüentemente a
internet. Um dia, entrou em um site de música psicodélica e qual não foi a sua
surpresa quando se deparou com a capa de “Geração Bendita”. O site era o “Rato
Laser”. Torge apresentou o músico para o pessoal do Psychedelic Music, que se
ofereceu para relançar o disco, remasterizado. Caetano e os outros integrantes
começaram então uma encruzilhada para promover o relançamento. A bolacha, de
180 gramas, foi relançada em edição limitada e foi disputada pelos
colecionadores. Segundo a reportagem de Essinger, toda a tiragem de 410 cópias
foi vendida em uma semana. O sucesso internacional era tão grande que o
original, de 1971, chegou a sair por US$ 2,5 mil dólares nos Estados Unidos.
Sérgio Regle conta que, depois que se aposentou, comprou
equipamentos – dessa vez, amplificadores Marshall, microfones, instrumentos,
pedaleira, tudo de ponta. Mas a empreitada não deu certo: “O pessoal já está
meio desanimado, cada um curtindo seu lado familiar de pai, de avô”, conta.
Tudo o que sobrou foi um violão, em que o músico continua tocando o que gostava
na adolescência.
Sexo, drogas
e caboclos juremados
No meio do sertão pernambucano, em Brejo da Madre de Deus,
cidadezinha a 180 km de Recife, ergue-se uma monumental construção feita para
simular a terra em que Jesus nasceu. Em Nova Jerusalém, todos os anos, é
apresentada uma simulação da Paixão de Cristo de dimensões colossais, que chega
a envolver 500 atores. Pois bem: foi nesse mesmo local, em 1972, que o estado
de Pernambuco viu aflorar a geração mais maluca de sua história.
Assim como no resto do país, a brecha para o surgimento do
desbunde foi aberta alguns anos antes pelo tropicalismo – em Pernambuco,
capitaneado pelas figuras de Aristides Guimarães, Celso Marconi e Jomard Muniz
de Britto. A expressão máxima do tropicalismo recifense foi o LSE, Laboratório
de Sons Estranhos. Como o nome já diz, tratava-se de um espetáculo musical
anárquico conduzido por Aristides, Geraldo Amaral e Robertinho do Recife – este
último, conhecido como “Jimi Hendrix de Pernambuco”, dava um show na guitarra e
na cítara. O jornalista José Teles compara a performance do grupo a que o
Velvet Underground fazia exatamente na mesma época, em Nova York.
Em 1972, Recife era uma cidade pequena, com hábitos provincianos,
marcada por uma profunda desigualdade social. A sociedade de lá era ainda mais
conservadora do que a do Rio de Janeiro e a de São Paulo. Drogas? Se um pai
mais arretado descobrisse que o filho estava fumando maconha, era capaz de
mandá-lo direto para o hospício. Em meio às condições adversas, surgia em
Recife uma turma preocupada com a arte e com o espírito, que se reunia para
cantar e tocar violão, formando e desformando bandas para se apresentar no
bar-símbolo daqueles tempos, a Drugstore Beco do Barato.
Localizado no centro de Recife, o bar era tão moderninho que até o
jornal underground Rolling Stone, carioca da gema, o estampou em suas páginas,
em agosto de 72: “Quem for ao Recife não deve deixar de procurar o Beco do Barato, um
barzinho muito gostoso, com música ao vivo, que vende discos importados e fitas
cassete”. No Beco do Barato não havia preconceito de classe, de sexo ou de
raça. Os filhos da aristocracia pernambucana – que quase sempre já tinham
desbundado em intercâmbios no exterior – conviviam em harmonia com bancários,
desempregados e hippies que se alimentavam de luz e arte.
Um desses freqüentadores era Lula Côrtes. Nascido na Base Aérea de
Recife, desenhista desde que nasceu, Lula na infância tinha que fugir do avô
que, quando bebia, o obrigava a mostrar o dote artístico para os amigos. Por
causa do trabalho do pai militar já havia morado no Rio de Janeiro e em Minas,
mas voltou à cidade natal ainda adolescente. Por sua aproximação com pilotos
americanos, tinha informações privilegiadas sobre os acontecimentos musicais
estrangeiros – gostava de Rolling Stones e Bob Dylan, e ficou sabendo de Jimi
Hendrix bem antes de seus conterrâneos. Mesmo provindo de família abastada,
resolveu largar tudo quando ainda era moleque, virou Beatnik e foi morar na
rua. Nessa época, trabalhava como desenhista e conheceu a descolada estudante
de arquitetura Kátia Mesel, companheira de desbundes e futura produtora
literária, artística e musical da cena pernambucana.
Laílson de Holanda Cavalcanti também pertencia à classe mais abastada
de Recife. Adolescente, fez intercâmbio nos EUA, em Arkansas, onde terminou o
high school e aperfeiçoou seus dotes de desenhista. Assim como Lula, Laílson
também atuava na música – na temporada norte-americana, chegou a montar uma
banda cover de Jimi Hendrix e Creedence. De volta ao Recife, se enturmou tão
bem entre os descolados que foi convidado pelo pessoal do DCE da Universidade
Federal de Pernambuco para ser o coordenador musical de uma empreitada ousada
nos anos de chumbo: um festival de música ao ar livre. Em Nova Jerusalém.
Cercaram de
cimento janelas, portas e metais
O rio onde
nadavam meus peixes azuis
Levaram embora o
som e deixaram as naves espaciais
Nos programas e
gibis pra me enganar
Mas voei em meu
cavalo de fugas
Pra onde quer que
fosse o pássaro
Louco em meu
coração
(“Vacas Roxas”, da banda Phetus, sem
gravação, de 1973)
A I Feira Experimental de Música do Nordeste, que aconteceu em
onze de novembro de 1972, reuniu a “juventude prafrentex” de Recife. O
“Woodstock cabra da peste” não deixou nada a dever para o original
californiano: lendas dão conta que a platéia divertia-se tomando ácido
dissolvido em baldes de Q-suco. Foi entre aquele “pôr e nascer do sol” que
subiu ao palco uma recém-formada banda, ainda sem nome, composta por jovens
músicos da periferia do Recife.
* * *
Marco Polo Guimarães nasceu para escrever. Assim como seus
companheiros Laílson e Lula Côrtes, embarcou na viagem de sua vida desde cedo.
Em 1966, aos 18 anos, lançou seu primeiro livro de poesias. Em 1969, começou no
jornalismo no Diário da Noite, em Recife. Depois, de carona, foi ao Rio de
Janeiro. Sem conseguir emprego lá, partiu para São Paulo, onde teve mais sorte:
conheceu o conterrâneo Fernando Portela, editor de Cidades do Jornal da Tarde,
que lhe ofereceu uma vaga no jornal e um lugar para morar. Marco sentia falta
do mar e sempre que podia, escapava para passar o final de semana no Rio.
Acabou voltando para a capital fluminense, onde vivia de trabalhos freelance
para a editora Bloch e curtia umas com os companheiros desbundados Paulo Vilaça
e Ezequiel Neves, que havia conhecido na redação do JT. Nessa temporada no
sudeste, Marco Polo escreveu e compôs muito. Quando retornou a Recife, no final
de 1972, encontrou uma cena musical efervescente, cheia de músicos criativos e
talentosos, prontos para despejar energia em suas composições.
Uma banda da época, Os Selvagens, era formada por jovens de classe
média baixa – entre eles, o estudante de engenharia magricela Almir de
Oliveira, o percussionista Agrício Noya e o talentoso guitarrista Ivson
Wanderley, o Ivinho. Anos antes, Almir já havia sido apresentado a Marco Polo
por Rafles, amigo que era “tipo um imã, agregava todos ao redor dele”, como
lembra o jornalista. Enquanto este estava no Rio e em São Paulo, a turma de
Almir se aproximou de Laílson – mas Marco voltou e houve uma debandada em sua
direção. “A gente ficou entre os dois. Pela questão de identificação musical,
começamos a fazer o trabalho com o Marco, mas demos um suporte a Lailson”,
lembra Almir. A aproximação foi inevitável e logo foi criada uma banda, ainda
sem nome, cuja estréia seria na esperada Feira Experimental de Música.
A turma foi à Nova Jerusalém de ônibus, na sexta, dia anterior ao
festival, para ajudar nos preparativos. Passaram a noite toda trabalhando e
fazendo farra – quando amanheceu, estavam todos cansadíssimos, não haviam
dormido. O único que tinha conseguido pegar no sono era Ivinho – que, na manhã
de sábado, acordou com um dos olhos vermelho-sangue, por causa de um inoportuno
derrame na vista. O show de estréia da recém-formada banda estava marcado para
as 3h da madrugada. Almir de Oliveira mal se agüentava de sono e pediu que
Laílson, o organizador, mudasse o horário para meia-noite. O pedido foi negado.
“Eu sei que, quando deu uma, duas horas da manhã, eu arriei, fui dormir. E aí,
quando deu três horas, acordei com Laílson e Ivinho me chamando”, lembra o baixista.
A banda subiu ao palco com ele bêbado de sono e Ivinho tocando de costas para a
platéia, de óculos escuros, por causa dos olhos sensibilizados.
Apesar do sufoco, foi ali que o grupo ganhou forma e nome:
Tamarineira Village. Tamarineira era o nome de um hospício famoso na época em
Recife, e o Village (que é pronunciado “Világe”) fazia referência à vila de
comerciários da cidade, de onde vinham a maioria dos integrantes. Rafles, Marco
Polo, Agrício Noya, Almir de Oliveira, Ivinho e Israel Semente começaram a
ensaiar. Um mês depois da estréia em Nova Jerusalém, a banda deu o primeiro
passo para o sucesso na capital pernambucana: um show no Beco do Barato, em
17 de dezembro de 72.
No final dessa apresentação, as meninas voaram para cima dos
músicos: “Eram todas garotas da zona sul, de famílias burguesas ou classe
média-alta, que andavam em carros último tipo e que, até então, não tomavam
conhecimento da gente (éramos pobres e só andávamos de ônibus). Ficamos ali,
parados, sem querer acreditar, enquanto éramos abraçados, beliscados, e
amolegados. Dali em diante, nossa vida sexual tornou-se um
paraíso”, lembra Marco Polo no livro Memorial. O som embrionário
do Tamarineira Village era uma oportuna mistura de Rolling Stones com baião, Beatles
com Jackson do Pandeiro, chiclete com banana. Como em Recife os discos
demoravam ainda mais a chegar do que no sudeste brasileiro, os garotos iam
ouvir rock nos puteiros. Era lá que os marinheiros recém-chegados da América,
repletos de novidades musicais, iam se divertir. Além da energia juvenil do
rock’n’roll, a formação musical dos garotos passava, obrigatoriamente, por
Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Capiba, e a raiz cabocla do maracatu. Lula
Côrtes, inclusive, diz que a raiz da psicodelia nordestina está ali: nos
caboclos juremados, que criavam sob influência da jurema, planta alucinógena, e
de cachaça com pólvora, o “azougue”.
Por estarem envolvidos nessa salada de influências, ninguém queria
ser classificado. “Tanto fazia ser samba, como rock, como baião, como valsa. A
gente não tinha essa preocupação”, afirma Marco Polo. Almir concorda, dizendo
que fusão musical era espontânea: “Deixamos que essa formação musical que a
gente tinha se liquidificasse dentro de nós. Quer dizer, aquilo que estava
saindo, não era que a gente estava pensando ‘vamos misturar isso com aquilo’,
não, já saía misturado. Afinal de contas, o nosso próprio corpo já nasceu de
uma mistura”.
* * *
Durante a Feira Experimental de Música, Laílson conheceu – e se
encantou – com Lula Côrtes. Como ambos eram artistas plásticos e também se
aventuravam na música, tiveram afinidade imediata. Lula havia acabado de voltar
de uma temporada no Marrocos, de onde trouxera um tricórdio, uma espécie típica
de cítara. Começaram encontros freqüentes na casa de Lula, onde os dois viajavam tocando o novo instrumento e
um violão de 12 cordas. Laílson ficava na base com a viola e Lula improvisava
por cima com o tricórdio. “Juntamos dois hemisférios planetários, o som do
Oriente, o som do Nordeste e o som que tinha influência do blues, cultura
africana. Nós teorizamos: ‘você usa uma escala que eu não uso, no entanto
encontramos um equilíbrio dentro disso, juntando dois universos diferentes,
juntando dois sons e criamos um terceiro’”, define Laílson.
A dupla chegou a gravar alguns improvisos em fita de rolo, no
estúdio que Lula tinha em casa. Kátia Mesel, esposa de Lula na época, sugeriu
aos dois que fizessem um disco “de verdade”. Procuraram a Rozemblit, gravadora
recifense que tinha tido seus tempos áureos com o frevo, mas naqueles anos
amargava uma grave crise financeira. Laílson pegou as economias que estava
juntando para voltar aos EUA, Lula completou com o que tinha e a dupla alugou o
estúdio. As dificuldades técnicas eram enormes: “O disco tem um ‘fake stereo’,
na verdade a faixa mono é reproduzida nos dois canais. Se fôssemos fazer um
playback, não podíamos ficar muito longe da mesa de som, senão dava delay!”,
lembra Laílson. No final, deu certo. Em pouco mais de duas semanas, varando
noites seguidas – e deitando e rolando nos equipamentos e no parque gráfico à
disposição – a dupla de artistas finalizou o trabalho. Totalmente experimental,
a produção musical e artística do disco ficou por conta do trio Lula, Laílson e
Kátia.
Satwa foi lançado logo no início de 1973. Inspirado na filosofia
hindu, o nome “é o terceiro aspecto da realidade, o intermediário, a harmonia,
a interface entre o espírito e a mente, dentro de um conceito brâmane”, explica
Laílson. No disco, instrumental, há viagens musicais pré-construídas – como
“Blue de um cachorro muito louco”, cujo solo de guitarra (feito por Robertinho
do Recife) se estende por quase cinco minutos e mistura-se com o som metálico
do tricórdio. Em Satwa há também improvisos feitos na hora, como “I can be
satwa”, cuja viola remete às origens nordestinas da dupla. “Fizemos todos os
tipos de experimentação, como uma letra em que cada silaba é uma nota”, lembra
Laílson.
O público pernambucano achou aquilo tudo muito estranho. “Aqui em
Recife, na época em que a gente fez, a maioria das letras era muito engajada no
problema político. Não que nós não fôssemos, mas forçadamente eles viviam com
aquela sombra da Bossa Nova, da forma de cantar o protesto bem em cima dos
ídolos da época, como Chico Buarque. A gente começou, por causa do
psicodelismo, a dar esse recado num outro nível”, define Lula Côrtes. Para
Laílson, o disco é “uma contravenção completa dentro do sistema repressivo”. O
confronto com o sistema era mais subjetivo – sem letras, o som psicodélico e os
títulos das músicas eram as ferramentas para passar a mensagem de contestação.
Nomes como “Valsa dos Cogumelos” e o próprio “Blue do cachorro muito louco”
representam bem o espírito da dupla. “Todo mundo falava ‘Lula Côrtes e Lailson
são doidos’, sabe?”, lembra Lula.
Depois da incursão no estúdio, a dupla seguiu caminhos diferentes.
Laílson queria fazer shows e reaver o dinheiro que havia investido na gravação
– mas o amigo resolveu se dedicar às artes plásticas. “Foi uma coisa que me
deixou surpreso, investi toda minha grana no disco”, diz Laílson. Naquele
início de 1973, sem dinheiro e desiludido, Laílson foi convidado para tocar no
Beco do Barato. Acabou chamando dois amigos e, dessa vez, nada de folk
psicodélico: o negócio era rock medieval.
* * *
Paulo Rafael era um garoto de 17 anos que usava óculos fundo de
garrafa e estava conhecendo o pessoal do Beco do Barato. O primeiro da turma
que se aproximou dele foi Laílson, artista mais velho que lhe rendia um misto
de estranheza e admiração. “O cara passava na frente da minha casa com uma cara
de louco, ele e o Robertinho do Recife, que eram os caras que tinham vindo da
América, e era meio mito. Tinham cabelão, nem aí, andando na rua meio
passeando, meio flutuando”, conta Paulo Rafael, que na época tocava em uma
bandinha de colégio “ruim pra caramba”, mas que ao menos tinha equipamentos, coisa
rara em Recife. Ele conseguiu levar o companheiro Laílson para o conjunto e,
como conta, aos poucos os dois foram tomando a banda para si. “Fomos ficando
com os equipamentos e botando os músicos pra fora”, ri Paulo.
Para o show no Beco do Barato, Laílson ainda chamou o colega de
conservatório José Vasconcelos de Oliveira, futuro Zé da Flauta, também com 17
anos. Declaradamente influenciados por Jethro Tull, surgiu a idéia: “porra,
bicho, vamos fazer rock medieval”, lembra Paulo Rafael. Estava criado o Phetus.
O primeiro passo para a construção do tal clima medieval foi a mudança de
nomes: Laílson, que tocava craviola de 12 cordas, passou a ser Laylson; Paulo
Rafael virou Paulus Raphael, encarregado da viola de dez cordas; e Zé, na
flauta doce, tornou-se Jhosé. De rock medieval mesmo, só tinham a intenção.
Como não possuiam instrumentos, foram obrigados a criar a banda de rock
totalmente acústica. A sonoridade tinha fortes influências progressivas, que se
misturavam a ritmos nordestinos, trazidos por Paulo Rafael, originário de
Caruaru, e Zé da Flauta, ligado nas bandas de pífano.
Desde o dia da estréia, o Phetus só tocava depois da meia noite.
Além das músicas malucas – tinha uma com letra em tupi-guarani -, uma apresentação
do grupo era cheia de efeitos especiais. Laílson fazia projeções de slides com
fotografias estranhas, preparava efeitos com gelo seco, fazia os figurinos
baseados em camponeses medievais. O clima era ainda mais estranho porque toda a
carga pesada e gótica contrastava com o som acústico da banda. Hoje, Paulo
Rafael diverte-se com a história. “Zé da Flauta com aquela flautinha doce, não
tinha o menor impacto. Para tentar chocar, ele colocava a flauta no nariz, ele
tem um ventão. Era um folclore danado”.
Enquanto o Phetus fazia sucesso no Beco do Barato, a Rozemblit
percebia que alugar os estúdios para aqueles doidões podia ser uma maneira de
sair do vermelho. No comecinho de 73, capitaneada por Marconi Notaro, a turma
psicodélica nordestina se reunia para gravar um dos maiores registros da cena:
Marconi Notaro no Subreino dos Metazoários. Em “Do frevo ao manguebeat”, o
jornalista José Teles diz que Marconi já havia tentado ser músico, poeta,
escritor, produtor de discos e até criador de porcos, numa granja chamada Sítio
Ação. Quando surgiu a idéia de gravar o disco, procurou Lula Côrtes e Kátia
Mesel e lançou a idéia, abraçada naquele mesmo instante.
A Marconi e Lula juntaram-se outros personagens da cena -
Robertinho do Recife, Israel Semente, Agrício Noya, Zé da Flauta e um paraibano
recém-chegado à cidade, Zé Ramalho. A turma se internou no estúdio da
Rozemblit, em dias anárquicos de criação e gravação. A maioria das músicas saiu
na hora, de improviso. O disco tem uma salada musical que passeia entre o samba
de “Desmantelado”, a sonoridade e as letras lisérgicas de “Antropológica”, o
improviso sentimental de “Não tenho imaginação pra mudar de mulher”, faixa só
com viola e voz, e “Maracatu”, que levou os tais tambores caboclos para dentro
do estúdio.
* * *
Naqueles idos de 1973, o Tamarineira Village era a maior banda de
Recife. Shows lotados, fã-clube, mocinhas histéricas, turnês pelo nordeste -
mas o sucesso não tirou os músicos do aperto financeiro. Marco Polo, Almir,
Ivinho, Israel, Rafles e Agrício eram todos de origem humilde; dentro do
Tamarineira sobrava talento, mas faltava profissionalismo para fazer a banda
gerar dinheiro. O aperto era tanto que, para tocar fora, os músicos tinham que
pegar carona na estrada. No início daquele ano, foram passar uma temporada em
Salvador, onde alugaram uma casinha e sobreviveram à base de shows, até que
estes ficaram mais escassos. Sem dinheiro e no perrengue, arrancaram as portas
da casa e fizeram fogueiras para cozinhar. Depois, largaram o imóvel depenado e
se mandaram para Recife.
De volta à terra natal, Marco Polo capitaneou uma mudança
estrutural no Tamarineira: era hora de se profissionalizar. Buscando melhorar o
quadro técnico da banda, o primeiro passo foi demitir Rafles, que funcionava
bem como mentor intelectual e agitador, mas não como músico. Paulo Rafael, que
ainda era do Phetus e acompanhava a turma do Tamarineira nas andanças e
cantorias pelas ruas de Recife e Olinda, foi então convidado a entrar na banda.
A idéia inicial era que tocasse baixo no lugar de Almir, mas o garoto acabou
trocando de instrumento por insistência de Ivinho, que sentia falta de uma
guitarra-base. Quando o convite foi aceito, Laílson e Zé da Flauta ficaram
chateados. E Paulo Rafael, do alto de seus 17 anos, sem saber direito como, se
viu dentro da banda mais transada da cidade.
“Eu não fazia muito o perfil deles, eu era muito mais filhinho de
mamãe, cheio de frescurinha. E eles já tinham vindo de Salvador, de Sergipe,
pedindo dinheiro na rua, os caras já estavam com uma casca grossa. Eu era café
com leite”, conta ele. Claro que o garoto tinha que ouvir sarro de todos os
outros integrantes da banda, mas mesmo sendo mais novo e bem diferente do
resto, sua entrada foi fundamental para a trajetória do grupo dali em diante.
“Quando eu entrei, o troço mudou. Como se fosse transformar em uma
coisa menos esquisita do que era, menos sofrida. A história para trás tinha
sido muito batalhada, muito cheia de dificuldades”, define. A mudança começou
pelo nome da banda. Foi uma cigana do interior da Paraíba quem deu a sugestão:
dali em diante, eles seriam o Ave Sangria.
Depois de quase dois anos como Tamarineira Village, a banda havia
juntado um repertório
considerável. Além de ensaiar e dar novas roupagens às músicas
antigas, essa era a hora de compor, compor, compor. As mudanças injetaram
fôlego criativo em todos os integrantes e seus encontros, antes espaçados e
desorganizados, tornaram-se mais freqüentes, tanto em ensaios formais ou em
andanças pelo centro de Recife, onde tocavam violão, cantavam e criavam em
conjunto. “Em composição a gente interagia muito. Era comum, quando fazíamos
uma música, mostrar pros outros. Então a música de um servia de referência para
o outro. Quando o Marco mostrava uma música, eu pensava ‘eu tenho que fazer
algo desse nível pra frente’. Quer dizer, o que a gente tinha era esse estímulo
para que a criação fosse cada vez melhor. Era como se fosse um jogo de basquete
em que a bola, o tempo todo, estivesse correndo de mão em mão, tanto em música,
como em arranjo”, lembra Almir de Oliveira.
Primeiro as
pernas voaram
De borracha, de
nada
Ou músculo leve
Salto livre
O suficiente pra
planar
E o corpo todo
foi atrás
Em cima, embaixo
dos lados, no
meio
Centro do mundo
E os violões
brilharam sobre a noite
Enquanto as
lâmpadas de mercúrio
Iluminaram a
praça
Caracóis, pedras
e lesmas
Pernas roçam de
leve o chão
E os olhos
abertos
E o sorriso
De quem se liga
no mar
(“Momento na Praça”, do disco Ave Sangria,
de 1974)
Em uma das inúmeras andanças musicais por Recife, o grupo parou
numa praça, em Casa Forte, onde havia uma feira hippie. Todos sentaram sob o
luar, tomaram um ácido e passaram a madrugada alucinados, tão doidões que não
conseguiam nem falar uns com os outros. “A gente tava vendo lesma caindo e
tinha uma lâmpada forte que parecia que era dia”, lembra o guitarrista Paulo
Rafael. Foi naquela noite catártica que compuseram, coletivamente, “Momento na
praça”. Entretanto, esta canção foi uma explosão única, literalmente
psicodélica. Não era tão fácil assim conseguir um ácido e as criações da banda
não estavam diretamente atreladas às experiências lisérgicas. No máximo às
canábicas, especialmente à famosa espécie nordestina manga rosa.
Mas não há como negar a influência do psicodelismo nas criações do
Ave Sangria, mesmo que não ligadas diretamente ao LSD. “Quando você abre alguns
portais da mente para absorver e para expressar as informações que recebe, você
passa a dizer coisas de uma forma que nem sempre é aquela que as pessoas estão
acostumadas”, define Almir de Oliveira. Marco Polo, o principal letrista,
considera-se influenciado pela linguagem descontínua e pelo surrealismo. Para
ele, “Geórgia, a Carniceira”, “Corpo em Chamas” e “Momento na Praça” “traduzem
a questão do psicodelismo no sentido de não ter um sentido óbvio. São viagens,
são coisas para além da realidade”.
A banda, cada vez mais afinada, acompanhava o ritmo lisérgico das
criações. “Geórgia, a Carniceira”, tem guitarras distorcidas, um batuque
violento e um ritmo frenético, que acompanha a letra de Marco Polo em
desespero:
Geórgia, a
carniceira dos pântanos frios
Das noites do
Deus satã
Jogando boliche
com as cabeças das moças mortas de cio
No levantar das
manhãs de abril
(“Geórgia, a carniceira”, do disco Ave
Sangria, de 1974)
“É tocada de uma maneira nevrálgica, cheia de nervuras. Muito
estranha. Acho que ela é uma música que sintetiza a banda”, define o vocalista.
“Corpo em chamas” é bem rock´n roll, com cada guitarra indo para um lado, um
baixo marcante e palmas; muito dançante, a pegada contrasta com a letra
dramática de Marco Polo, que remete a um final de relacionamento: “‘Corpo em
chamas’ é psicodélica na música, que é descontínua, cheia de mudanças de andamento,
refletindo a fragmentação do discurso poético psicodélico”, sintetiza o autor.
Quando eu botar
fogo na roupa você vai se arrepender do que me fez,
Você vai ver meu
corpo em chamas pelas ruas, oh yeah,
E o povo todo
horrorizado
Iluminado pelo
meu fulgor mortal
Eu vou dançar
Girando o corpo
incendiado
Até cair no chão
O grito agudo da
sirene
Dos bombeiros
Alertando a
multidão
Alguém falando
que era um louco
No céu negro, a
lua cheia a brilhar
Segure a mão de
uma criança
A mão gelada
E a mãe gritando:
“Não e não!”
E eu tão feliz
Girando colorido
Sob as chamas do
luar (...)
A presença
selvagem
De um clarão
vermelho
Rodopiando pelo
chão
Esse sou eu
Dorido, dolorido
Colorido e sem
razão
Ou não...
(“Corpo em chamas”, do disco Ave Sangria, de
1974)
Bem diferente de “Corpo em Chamas” e “Geórgia, a Carniceira”, “Seu
Valdir” é leve, malandra, e – talvez até por sua simplicidade – polêmica. A
letra é uma declaração de amor a um tal de “Seu Valdir”. Na voz de Marco Polo,
era recebida com escândalo na conservadora Recife. Originalmente, o cantor
havia feito a composição no Rio de Janeiro
para ser cantada com uma pegada cafona por uma mulher, Marília
Pêra, na peça A Vida Escrachada de Baby Stomponato, de Bráulio Pedroso. A
música acabou não sendo aproveitada no teatro, mas foi muito bem usada pelo Ave
Sangria, que a transformou em um samba malandro com guitarras.
* * *
Só a sonoridade e as letras do repertório do grupo já bastariam
para chocar a conservadora sociedade nordestina, mas os cabeludos chegaram ao
auge nos inúmeros shows que fizeram ao longo de 1973 e 1974. Enquanto o rock´n
roll malandro corria solto no palco, ensaiadíssimo e repleto de improvisos e
novos arranjos, os músicos dançavam, passavam batom... e se beijavam. “A gente
sempre dava beijo na boca um do outro, e isso provocava reações
contraríssimas”, ri o vocalista. Até Paulo Rafael, o café-com-leite, entrava na
onda. “Eu ia junto. Se eu não fosse, pô, tava expulso da banda!”, lembra.
A platéia, provavelmente mais louca do que os próprios artistas,
ia ao delírio. “Rapaz, o público curtia muito, gostava muito, pulava, dançava,
sabia a letra”, lembra Almir. “A gente criou um mito na cidade, era uma banda,
que se a gente dissesse ‘a gente vai tocar um sonzinho ali no bar’, enchia de
gente”, diz Paulo Rafael. O Ave Sangria tinha o dom de reunir, sob o mesmo
teto, as patricinhas de Boa Viagem e os malandros mais pobres do Recife. E
mulheres, muitas mulheres. “Muita menininha, classe A, que nunca seria pro
nosso bico, porque a gente sempre foi de classe média pro chão, e a gente crau,
crau, crau, crau, crau”, brinca Marco Polo.
No Concerto Marginal, festival que parou Recife em 29 de setembro
de 1973, Almir lembra que dois marginais – “realmente marginais” – se aproximaram
e deram os parabéns para a banda após a apresentação. “A gente se surpreendeu
de ver que eram duas figuras assim. E, realmente, eles não fizeram nada com
ninguém, foram assistir o show”, conta o baixista.
Junto com esses “marginais”, assistiam ao espetáculo o
tropicalista Celso Marconi e toda a intelectualidade de Recife.
Naquele ano, o Ave Sangria tocou em tudo quanto era festival, em
todo o nordeste: com Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Zé Ramalho, Novos Baianos, em
Natal, Aracaju, Caruaru. Mas mesmo com o sucesso, a falta de grana era uma
constante. Primeiro, eles não tinham grande parte do equipamento: Almir não
tinha contrabaixo, Marco Polo não tinha microfone, Israel não tinha bateria.
Ivinho tinha a guitarra, mas não o amplificador. A sorte deles é que um cara
chamado Maristone, produtor musical da cena de Recife, era muito gente fina.
Ele conhecia todo mundo, havia produzido bandas de baile e vivia de consertar e
alugar equipamentos musicais. Quando surgiu o Tamarineira, era ele quem
emprestava tudo. “Ele era nossa fada madrinha”, define Almir de Oliveira.
O produtor dava uma força danada não só para o pessoal do Ave
Sangria, mas para toda a insurgente cena de Pernambuco. “Ele fazia todo o
trabalho de palco pra gente, montava tudo. Ia lá, passava o som, tudo. E fazia
isso com um amor do caramba, como se a gente fosse super estrela”, lembra Lula
Côrtes. “Uma vez, o Maristone ia emprestar o equipamento para a gente. A
caminho do show, furou o pneu da Kombi dele. Só que o macaco da Kombi, quando
chegava no ponto de trocar o pneu, começou a ceder. A gente tinha que segurar a
Kombi para ele trocar o pneu. Segurar a Kombi para não arriar, para trocar o
pneu, para levar pro show”, recorda Almir, rindo do perrengue.
A produção dos shows do Ave Sangria era toda baseada no
faça-você-mesmo. Eles pediam dinheiro emprestado, saíam nas ruas pregando os
cartazes e distribuíam os panfletos. Paulo Rafael, por ser o café-com-leite,
era o responsável pela parte burocrática. Era ele quem tinha que levar os
cartazes para aprovação na censura. “Os caras morriam de medo de ir, porque
achavam que já estavam fichados”, lembra. Alugar o teatro e assinar os
pagamentos também eram tarefas do novato: “Como eu era menor, se desse uma
merda e a gente não
pagasse, não ia acontecer nada”.
Mas não faltaram sufocos para o garoto. Na primeira vez que Paulo
Rafael se apresentou com o Ave Sangria fora de Recife, foi obrigado a aprender
a se virar do jeito dos mais velhos. “Aparentemente tava tudo organizado, tinha
passagem de ônibus, tinha um hotel”, lembra. Fizeram o show – com Zé Ramalho e
Marconi Notaro – e ficaram muito doidos. Não conseguiam dormir. No dia
seguinte, quando Paulo se deu conta, viu que só ele tinha sobrado na cidade.
“Todo mundo debandou”, conta. “Eu era o menor. Tinha 17, 18 anos. E os caras...
já tinham mil anos de estrada, foram pedindo carona”. A sorte do caçula foi
conhecer uma “hippinha” que foi com a sua cara: “Eu disse pô, tô indo para
Recife. A gente foi pedir dinheiro na rua, vendendo pulseirinha. Aí quando eu
cheguei, voltei puto, que banda da porra. Aí os caras disseram ‘pô, bicho, na
hora do desespero é cada um por si’”.
Falta de pagamento, mesmo, Marco Polo garante que não houve. Mas a
banda não conseguia ganhar dinheiro. Todo mundo continuava pobre – Israel
Semente Proibida morava em um pardieiro no centro da cidade, sem grana para
nada. “Eu levava ele em casa para comer, se não ele ia morrer de fome”, lembra
Paulo Rafael, o único que ainda morava com os pais. Eles iam e voltavam dos
ensaios a pé, carregando amplificadores nas costas. Raras eram as vezes que
tomavam um ônibus. As pressões sobre a banda aumentavam – da família, dos
amigos e deles mesmos. Era a hora de fazer o negócio finalmente dar certo.
* * *
No início da década de 70, o Quinteto Violado colocou Pernambuco
no mapa musical brasileiro. Na mesma época - entre o final de 1973 e o início
de 74 - a MPB estremeceu quando surgiram, como relâmpagos hippies-roqueiros, os
Novos Baianos e os Secos e Molhados. As gravadoras descobriram que os jovens
desbundados também podiam vender e gerar dinheiro. A fim de descobrirem a nova
sensação musical brasileira, a Continental e a RCA mandaram olheiros para
Recife e deram de cara com o furacão Ave Sangria. A
Continental acabou levando a melhor e contratou os rapazes para
gravarem um disco, no Rio de Janeiro.
Já fechada no sexteto Marco Polo, Almir, Ivinho, Paulo Rafael,
Israel e Agrício, a banda ensaiou exaustivamente entre janeiro e abril de 1974.
Depois de quase dois anos fazendo shows, tinham quase cem músicas prontas –
todas na cabeça, porque ninguém tinha gravador. Só existia um problema: eles
nunca haviam entrado em um estúdio. Ainda em Recife, antes de embarcar, Almir
pediu a um produtor da gravadora, um maestro e pelo menos um mês para a
gravação. Mas chegando no estúdio Havaí, no Rio de Janeiro, a realidade era
outra: não havia instrumentos, só bateria. Maestro? Nem em sonho. E eles só
teriam uma semana para gravar e finalizar as músicas. O baixista tentou
argumentar, pedindo para que a hospedagem e as passagens fossem convertidas em
horas de estúdio, mas nada feito.
Para piorar, o produtor designado pela Continental para acompanhar
a gravação era Marcio “Vip” Antonucci, da dupla de iê-iê-iê Os Vips. Não que
ele fosse um produtor ruim, mas sua formação Jovem Guarda definitivamente não
tinha muito a ver com os malucos de Recife. O conteúdo do disco já estava
praticamente decidido, antes mesmo de entrarem no estúdio – gravariam as
canções mais queridas do público nos shows. Mas Marcio – “que vivia em um mundo
dos sonhos”, como Paulo Rafael define – torceu o nariz para os sons estranhos e
as quebradas de ritmo das músicas. Quando ouviu “Momento na praça”, o produtor
tentou argumentar com Almir:
– Rapaz, pô, grava outra coisa, essa música é muito esquisita!
Mas o repertório foi mesmo a própria banda quem escolheu e,
felizmente, “Momento na praça” entrou. Naquela correria, ninguém podia errar:
“Eu gravava a primeira e Marcio Vip Antonucci dizia ‘morreu, venha escutar a
merda que tu fizeste’, aí eu dizia ‘porra, do
caralho, tá bom’”, conta o vocalista. Em uma das faixas ficou
conservado um baixo errado de Almir de Oliveira. Somadas as dificuldades
financeiras e técnicas ao estilo conservador de Marcio Vip, muitas maluquices
das músicas do Ave Sangria não foram registradas na gravação.
Paulo Rafael acha que o disco não retratou a alma do grupo. “Nem
nós, nem o produtor, conseguimos expressar o que éramos ao vivo. No estúdio
ficou um negócio frio, meio duro, esquisito”. Mas Lula Côrtes, que viu uma
apresentação dos garotos antes de irem para o Rio de Janeiro, avalia que o som
do Ave Sangria “deu uma amadurecida” depois da gravação.
Disco finalizado, era hora de começar a divulgação. Laílson foi
designado para desenhar a capa: fez uma “ave-mulher pousando numa caatinga
psicodélica onde a luz da lua colocava tons de prata”, já no tamanho da
arte-final, em guache e tinta prateada. Mas, no final, a gravadora Continental
não quis lhe pagar os direitos pela ilustração e chamou um artista
para recriá-la, sem nem devolver os originais para Laílson.
“Colocaram na contracapa a frase ‘Layout Laílson de Holanda Cavalcanti’ e ponto
final. Muita cara de pau, né não?”, conta o cartunista. O resultado final
acabou ficando “um papagaio drag queen”, como brincam os ex-integrantes da
banda. Para fazer a divulgação do LP, o Ave Sangria escolheu uma foto que
chocou a sociedade: pegaram uma garota menor de idade – segundo Almir, da
classe alta pernambucana – e a colocaram nua, deitada de costas, no meio dos
marmanjos cabeludos. Até hoje, a identidade da menina é mantida em segredo.
* * *
Depois da gravação, a banda voltou à Recife. Assim como os outros
artistas da cidade, viviam na casa de Lula Côrtes, onde havia um grande gramado
e vários cômodos malucos. “Todos tocamos lá. O quintal dele era o Jardim do
Éden, onde conversávamos sobre tudo e fumávamos muita maconha”, lembra Zé da
Flauta, um dos assíduos freqüentadores. “Era uma ligação de jovens de uma época
que não estavam satisfeitos com a vida existindo”, define Marco Polo.
Além da maconha e do eventual LSD, a psicodelia nordestina na
figura do Ave Sangria, Lula Côrtes e companhia era fruto do chá de cogumelo, lisérgico
e gratuito. Apesar de todo o sistema repressivo, era muito fácil conseguir
qualquer droga. O Ave Sangria chegou a receber, pelo correio, um charuto de
maconha. “A gente era muito louco. A disposição para pular de abismo era “Bora?
Bora”. Vai todo mundo. Ninguém tinha medo de correr risco”, lembra Paulo
Rafael.
“Hei! man
Voce precisa
correr mais riscos do que eu
Hei! man
Pobre de quem não
percebeu
Hei! man
Voce precisa
correr tanto risco quanto eu
Hei! man
Pobre de quem não
se perdeu”
(“Hey man”, do disco Ave Sangria, de 1974)
O sucesso tão esperado pelos garotos do Ave Sangria não era apenas
para ganhar dinheiro: “A gente sabia que tudo o que estava em volta era um
lixo, novela, televisão. Alguma coisa interna dizia que o que fazíamos era uma
saída, tínhamos uma certeza muito absoluta. A gente estava procurando um meio
de continuar a se sustentar, mas o plano era uma coisa para continuar a vida,
para a gente ficar tocando junto, curtindo”, define o caçula do grupo.
O disco Ave Sangria foi lançado em julho de 1974. Vinte dias
depois, entrou na lista dos mais vendidos. O hit era “Seu Valdir”, que entre 19
e 26 de agosto ficou na 11ª posição na “Super Parada Global”, da Rádio Globo. O
pai de Almir, que morava no Rio, ligou para o filho para contar que a música
estava tocando muito por lá. Os músicos chegaram a receber uma carta de um
garoto de Manaus, que virou fã depois de ouvir “Seu Valdir” no rádio. As vendas
do LP também iam muito bem. Segundo estimativa da banda – a Continental não
lhes passou o número oficial – chegaram a ser vendidas de 15 a 20 mil cópias. O
“Big ben” Waldir Serrão, figura folclórica no rock baiano, radialista e
apresentador de TV, disse a Almir que o álbum estava vendendo muito por lá.
“Seu Valdir, o senhor
Magoou meu
coração
Fazer isso
comigo, Seu Valdir
Isso não se faz,
não
Eu trago dentro
do peito
Um coração
apaixonado
Batendo pelo
senhor
O senhor tem que
dar um jeito
Se não eu vou
cometer um suicídio
Nos dentes de um
ofídio vou morrer
Estou falando
isso
Pois sei que o
senhor
Está gamadão em
mim
Eu quero ser o
seu brinquedo favorito
Seu apito, sua
camisa de cetim
Mas o senhor
precisa ser mais decidido
E demonstrar que
corresponde ao meu amor
Pode crer
Se não eu vou
chorar muito, Seu Valdir
Pensando que vou
lhe perder
Seu Valdir, meu
amor”
(“Seu Valdir”, do disco Ave Sangria, de
1974)
Na imprensa, a recepção não foi das melhores. Todo mundo ficou
contra eles – à exceção, segundo Marco Polo, de Celso Marconi. Ana Maria
Bahiana, jornalista musical do Rio, classificou o som do Ave Sangria como “um
mero déjà vu”. José Ramos Tinhorão, histórico pesquisador e crítico de MPB,
também não poupou os pernambucanos. “O grandioso Tinhorão, que é culto, mas
preconceituoso pra caramba, disse ‘esses rapazes do Ave Sangria deveriam deixar
a música, pegar uma enxada e ir pro roçado, fazer uma coisa mais útil’”, lembra
Marco Polo.
Mas as críticas não os abateram muito e Marco Polo até incitava a
polêmica. Certo dia, chegou para um dos integrantes da Banda de Pau e Corda,
que tocava música nordestina tradicional, e disse:
– Vamos fazer o seguinte, eu escrevo um artigo esculhambando com
vocês e vocês escrevem um artigo esculhambando com a gente, a gente cria a
maior polêmica.
O rapaz negou. “Ficaram apavorados. Mas era isso. A gente era
assim... Era o lixo”, define Marco. Havia um apresentador de TV que começou a
pegar no pé do vocalista por conta de “Seu Valdir”. A música tocava todos os
dias e o homem bradava na telinha:
– Isso é uma vergonha, isso é um insulto, é um atentado moral a
sociedade pernambucana! A gente precisa de uma atitude em relação a isso!
* * *
O lançamento do disco do Ave Sangria concentrou as atenções da
repressão em cima daqueles malucos desbundados. Antes daquilo eles já eram
submetidos à censura, quando Paulo Rafael levava o material para aprovação, em
encontros sempre muito tensos. Houve uma canção do grupo que quase lhes rendeu
uma prisão, “Sunday”, em um dia que todos
foram levados à delegacia. “Era uma música de cunho psicodélico,
cheia de imagens, de coisas assim, eles cismaram que ali tinha alguma mensagem
subversiva”, lembra Almir. O baixista negou e o policial retrucou:
– Mas o povo vai achar que tem alguma coisa subversiva e pode
fazer alguma coisa, promover alguma coisa contrária ao regime.
E Almir:
– Rapaz, olha, vocês que são os censores não estão enxergando
isso, imagine o povo, que só sabe mesmo é passar fome.
O policial, furioso, olhou para Almir e disse:
– Olhe. Se repetir, fica.
E passaram a tarde em uma salinha na delegacia.
Para o artista Lula Côrtes, o mais grave era que os censores eram
garotos do interior que se alistavam e não tinham o menor embasamento cultural
para classificar nada. “Você ia preso por causa de palavras como desbunde, isso
é palavra que existe no dicionário, mas acho que ele relacionou com bunda ou
com alguma coisa pornográfica”, lembra. Marco Polo chegou a se aproximar de uma
censora, que não entendia as tiradas do letrista: “Era uma senhora até assim
simpática, gente fina, ficou minha amiga e tudo. E ela não percebia que eu
estava curtindo com a cara dela de tão imbecil que ela era”.
Uma vez, os integrantes do Ave Sangria foram todos presos,
acusados de estarem com drogas. Naquele dia, porém, não tinham nada – mesmo
assim, só conseguiram sair da delegacia de madrugada. Uma noite, durante um
show no elegante Teatro Santa Isabel, Marco Polo pediu à platéia “alguém tem um
cigarro aí?”. Lula Côrtes, sentado na beira do palco, atendeu ao pedido. O
vocalista tragou com gosto, e a platéia foi abaixo, pensando que era maconha.
Marco tranqüilizou: “é palha”. No dia seguinte, foi acordado pela Polícia
Federal em sua casa. O policial:
– Marco Polo, vá lá contar que você estava incitando a juventude a
fumar maconha.
– Como é que é, bicho?
Marco foi à delegacia e tentou se explicar:
– Não, é o seguinte, estava Lula Côrtes lá, eu pedi um cigarro,
ele me deu um cigarro de palha.
Tudo bem. Já saindo, Marco desafiou:
– Mas eu já fumei maconha.
– Epa, espera aí, como é que é?
– Fumei maconha em São Paulo, quando era jornalista do Jornal da
Tarde. Um major da Polícia Militar levou maconha pra gente conhecer o cheiro –,
caçoou. E foi embora.
A patrulha ideológica em Recife era tão forte que Almir de
Oliveira ia armado à faculdade de engenharia, onde estudavam muitos militares
que ficavam caçoando do hippie cabeludo. Um dia, juntou-se um grupo: “hoje é
dia de cortar o cabelo e dar um banho no hippie!”. Almir tirou o “canhão”, como
chama, da bolsa: “Os militares disseram ‘não, não, a gente está brincando’, eu
disse ‘mas eu não estou, não’”. Almir acabou largando a faculdade naquele
período.
“Lá fora é esse
sol aberto
Lá fora é essa
árvore
E o silêncio
costurado
Na boca de um
guarda
E o silêncio
costurado
Na boca de um
guarda”
(“Lá fora”, do disco Ave Sangria, de 1974)
Toda aquela geração produtiva pernambucana foi atingida pela
repressão. Desde os tempos da Feira Experimental de Música, Lula Côrtes
firmou-se como um guru da cena. Foi parar na cadeia inúmeras vezes. Em uma
noite, em um show na Paraíba, o produtor garantiu a Lula que os policiais
presentes “eram legais”. No camarim, o artista bateu as fileiras de cocaína em
uma bandeja e foi tomar banho. Dali a pouco, entra o policial. Lula acabou preso
em flagrante, nu, segurando a bandeja de pó. Numa outra vez, foi detido e,
enquanto esperava o camburão, acabou bêbado, de algemas, tomando cerveja com os
policiais que o prenderam. Bem menos divertido foi o período em que passou
vinte dias em um quartel, preso por visitar um amigo guerrilheiro. A polícia
federal o levou de sua casa, encapuzado. Nos primeiros três dias de prisão, foi
torturado. Depois, ficou mais de duas semanas em uma solitária, escura, ouvindo
choros e gritos. Estava enlouquecendo sem falar com ninguém. Um dia, passou um
rapaz em frente à cela.
E Lula:
– Arranja uma coisa para eu ler, pode ser Pato Donald, Recruta
Zero, qualquer coisa!
E o menino:
– Tu sabe porque que está aqui?
– Não.
– É porque tu leu demais.
Naquele período, o músico pensou que seria morto, convencido pela
tortura psicológica dos policiais. Até que foi jogado com os outros
prisioneiros, todos encapuzados, no camburão. Rodaram por horas no calor. Sem
saber o que estava acontecendo direito e sem enxergar, Lula lembra que o carro
ia parando e os presos iam sendo colocados para fora, um a um, às porradas:
“Batia no cara, o cara gritava, eles atiravam, depois diziam ‘vamos embora’”. E
os que iam sobrando no camburão ficavam apavorados, chorando, pedindo
clemência. Chegou a vez de Lula: deram-lhe uma porrada na testa e o largaram,
encapuzado e desmaiado, na frente de sua casa. “Eu acordei de madrugada com o
povo em volta de mim falando, ‘o que é isso?’, ‘deve ser comunista’”, lembra o
artista, que ficou estirado no chão, sem enxergar, até que um dos presentes
sugeriu que lhe tirassem o saco da cabeça. “Esse foi o dia mais torturoso, o
dia mais comprido da minha vida. Você fica descompensado depois”.
Eu sempre andei
sozinho
A mão esquerda
vazia
A mão direita
fechada
Sem medo por
garantia
De encontrar quem
me ama
na hora que me
odeia
(“Punhal de Prata”, Alceu Valença, do disco
Molhado de Suor, de 1974)
Quando o disco do Ave Sangria foi lançado, o som que era restrito
aos malucos da cidade caiu no mainstream. A mãe de Paulo Rafael dizia que tinha
medo das músicas da banda do filho. A sociedade conservadora viu pela primeira
vez o que aqueles garotos estavam fazendo. Dizem que a mulher de um general se
horrorizou e pediu para que o marido tomasse uma atitude em relação à “Seu
Valdir”. Lendas à parte, o fato é que, três meses depois do lançamento, o disco
foi proibido. Os rapazes já previam que a censura podia lhes cortar as asas,
mas o baque foi forte demais. Com o Ave Sangria na mira da repressão, não havia
mais a possibilidade da Continental bancar o lançamento do segundo disco, já
previsto no contrato.
“Eu acho que Marco Polo levou uma porrada. Eu levei, pelo menos.
Todo mundo levou”, diz Paulo Rafael. A banda continuou a fazer shows no mesmo
esquema punk de antes, pregando cartazes, fazendo a divulgação, pendurando
faixas na rua. Mas, agora, já não tinham o mesmo gás. “O disco ia ser a tábua
de salvação. Quando aconteceu este desastre, a gente foi caindo na real”,
define o guitarrista. Para tentar ganhar algum troco, arriscaram até fazer
publicidade, como anos antes Os Mutantes e o Módulo 1000 tinham feito.
“Tentamos arrumar um cara de agência de publicidade pra ver se ele
comprava a idéia de uma banda conceito, para vender produto”, conta Paulo. Mas
não deu certo.
Não deixes a vela
apagar nem o mastro cair
Nem a corda
prender
Só deixes o vento
que sopra seus cabelos espelhos dos meus
Te soprar e
soprar em mim
Pra depois deslizar
em ti
(“Dois navegantes”, do disco Ave Sangria,
de 1974)
Naquele final de 1974, surgiu um anúncio do Festival Abertura,
organizado pela Rede Globo. O Ave Sangria tentou inscrever uma canção, mas
nenhum dos músicos sabia escrever partitura nem tinha dinheiro para contratar
um maestro, então desistiram. Em dezembro daquele ano, a banda preparou o seu
derradeiro show: Perfumes Y Baratchos, no Teatro Santa Isabel, em Recife.
Laílson foi convidado para fazer o cartaz, desta vez, sem intervenções: uma
águia-mulher pousando, agressiva, e a frase “Prepare-se que seu coração vai
sangrar”, tudo em vermelho. Lula Côrtes e Kátia Mesel foram os responsáveis
pelo cenário e o resultado foi espetacular. Era uma mistura de “castelo
medieval com macumba”, como conta Paulo Rafael. O guitarrista Ivinho, que era
espírita, por pouco não se recusou a tocar no meio das velas. A apresentação entupiu
o espaço projetado para mil e duzentas pessoas, onde se aglomeraram mais de
duas mil e quinhentas. Muita gente, mesmo com convite, ficou de fora. O grupo
incluiu no repertório sucessos do disco e caprichou em novas roupagens para as
músicas. Marco Polo atingiu seu auge como cantor. Foi o espetáculo derradeiro –
depois daquilo, o próprio Teatro Santa Isabel fechou suas portas para shows de
rock.
Naquele momento, Recife estava desolada. Almir de Oliveira diz que
até a Zona da cidade fechou. Os rapazes do Ave Sangria – e também os outros da
turma – estavam sem trabalho, sem perspectivas, sem motivação. Eis que pinta
Alceu Valença, precisando de músicos para o acompanharam em São Paulo, no
Festival Abertura. Paulo Rafael já havia visto Alceu na televisão, em uma
propaganda do disco Molhado de Suor, e o encontrara um dia na porta do colégio,
onde trocaram uma idéia rápida – “você toca, eu também, que legal, vamos tocar
um dia”, e ficou por aquilo mesmo.
Ivinho, Agrício Noya e Israel Semente foram convidados pelo músico
para o Festival. Além do quarteto, participaram também Zé Ramalho, Zé da Flauta
– que ganhou o “da Flauta” neste show, para não ser confundido com Ramalho – e
o percussionista Wilsinho. A banda recém-formada se preparava na casa de Lula
Côrtes e foi num desses encontros que pintou
o convite para Paulo Rafael também ir, no lugar de Robertinho do
Recife. Ensaiadíssimo, o grupo apresentou no Teatro Municipal de São Paulo uma
leitura explosiva de “Vou danado pra Catende”, composição de Alceu do álbum
Molhado de Suor. “Foi um impacto, foi uma porrada, porque era a soma de todas
as forças, de Lula Côrtes, da viagem do Ave Sangria, do Phetus. Toda aquela
pressão que tinha sido guardada um tempão juntou com a pressão do Alceu, que
era muito forte também. Bicho, era uma coisa, uma porrada, quando tocou o
público veio abaixo, era um negócio de doido!”, recorda Paulo Rafael.
Ai
Telminha
Veja a enrascada
Que fui me meter
Por aqui
Tudo corre tão
depressa
As motocicletas
se movimentando
Os dedos da moça
Datilografando
Numa engrenagem
De pernas pro ar
(“Vou danado pra Catende”, Alceu Valença,
do disco Molhado de Suor, de 1974)
Depois daquilo, acabaram sendo convidados para fazer o
acompanhamento oficial de Alceu Valença – isso significava morar no Rio e dar
um adeus definitivo aos companheiros do Ave Sangria. Paulo Rafael foi: “Eu ia
me virar, mas eu ia ter um trabalho, porra, aí eu fiquei: vou ou volto? Disse
vamos embora, bicho”. Enquanto isso, em Recife, Marco Polo e Almir de Oliveira
desconsideravam a possibilidade de volta da banda. “Todo mundo era muito classe
média, alguns já tinham filhos, precisavam ganhar dinheiro, e
Alceu tinha oferecido a grana para eles trabalharem”, conta o vocalista.
“Depois disso tudo, voltar à estaca zero seria muito complicado. A gente
comentava ‘rapaz, vai ser difícil o Ave voltar com os meninos tocando e
ganhando dinheiro’. Como é que eles iam fazer? Iam voltar a tocar com a gente,
fazer o Ave Sangria sem perspectiva?”, reflete o baixista.
Um dia, a Rede Globo entrou em contato com os rapazes
remanescentes, em Recife, solicitando que fossem ao Rio de Janeiro para gravar
como Ave Sangria. O recado havia sido dado pela mãe de Ivinho. Surpreso, Almir
de Oliveira juntou a turma e foram, às custas da Rede Globo, ao Rio. Mas,
chegando lá, foram avisados que eram para ter ido apenas os acompanhantes de
Alceu. A Globo reclamou e pediu que a Continental arcasse com as despesas. A
gravadora aceitou, mas como condição, queria que fosse feito um quadro com o
Ave Sangria. E foi mesmo: no comecinho de 1975, a banda gravou um clipe para o
Fantástico. Entretanto, separaram-se antes que o especial fosse ao ar.
Não se iluda
Minha calma
Não tem nada a
ver
Sou bandido
Sou sem alma
E minto
Minha casa é o
reino do mal
O meu pai é um
animal
Minha mãe há
muito que enlouqueceu
Só resta eu
Com a minha faca
e a minha nau
Sou pirata
Solitário
Sem mais nada
Sem bandeira
Sem espada
E o mar pra viver
Sangue e vinho
derramados no convés
Sons de gaitas,
violões e pés
Quando, de
repente, surgem dez canhões
Era o Barba Negra
Com a sua turma e
suas canções
Não me ame
Eu não quero
Ver você assim
Vá se embora
E eu não choro
Sei cuidar de mim
Eu não tenho
todas essas ilusões
E apesar de ter
tantos corações
Minha guerra
nunca, nunca vai ter fim
Sim, sim, eu sei
Faço o meu
sorriso, faço minha lei
(“O pirata”, do disco Ave Sangria, de 1974)
No Rio de Janeiro, morando em uma quitinete, a vida de Paulo
Rafael não era uma maravilha total. Os shows não eram muito freqüentes e o
músico diz que “comeu o pão que o diabo amassou” por três anos. Quando voltava
a Recife para visitar a família no Natal, estava “magro, chupado, com os dentes
cheios de tártaro”. Marco Polo voltou ao jornalismo, Almir de Oliveira à
engenharia. Israel Semente afundava-se na bebida, Agrício continuou tocando na
capital pernambucana e Ivinho firmou-se como um grande guitarrista.
* * *
Lula Côrtes se dividia entre sua casa em Casa Forte, no subúrbio
de Recife, e sua fazenda na Lagoa do Carro, no agreste pernambucano. Eram
duzentos e cinqüenta hectares de terra, cortados por uma estrada, em que o
artista fez questão de fazer uma “reforma agrária”, assentando as famílias da
região: “Eu pegava as famílias, quem tinha filhos homens que podiam trabalhar,
quantos filhos tinham e ia registrar”. Uma vez, batizou uma família que não
tinha sobrenome de “Cobra” – Severino Cobra, Antônio Cobra. A partir de então,
era chamado pelos amigos de “Seu Cobra” e seu inseparável tricódio virou a
“tripinha”.
Quando tinha acabado de fazer Satwa, Lula conheceu Zé da Paraíba,
garoto que tinha um vozeirão e era talentoso na viola. Zé – que depois
substituiu “da Paraíba” por Ramalho – tocava em bandas de iê-iê-iê em João
Pessoa e Campina Grande e se mudou para Pernambuco no comecinho do movimento. O
dois se aproximaram mesmo durante os ensaios da banda de Alceu para o Festival
Abertura, que aconteciam na casa de Lula. Ficaram tão amigos que Zé Ramalho
praticamente passou a morar com o companheiro. Em uma das intermináveis
conversas, tiveram a idéia de viajar para o sítio arqueológico de Ingá do
Bacamarte, no sertão da Paraíba. Lá conheceram a misteriosa Pedra do Ingá, com
escritos rupestres creditados a Sumé, um feiticeiro de outro planeta que teria
vindo à Terra passar conhecimento para os índios. Os amigos se encantaram e
começaram a “fotografar e viajar naquela energia”, como conta Lula.
Um cacique de
pele colorida
Conquistou
docilmente o firmamento
Num cavalo voou
no esquecimento
Dos saberes
eternos de um druida
Pela terra cavou
sua jazida
Com as tábuas da
arca de noé
Como lendas que
vêm do abaeté
E como espadas de
luz enfeitiçada
Nas paredes da
pedra encantada
Os segredos
talhados por Sumé
(“Os segredos talhados por Sumé”, Lula
Côrtes e Zé Ramalho, do disco Paêbiru, de 1975)
Surgiu então a idéia de fazerem um disco místico, inspirado nas
experiências que tiveram naquele local. “Começamos a colher lendas do lugar.
Construímos essa mística pegando os sons mais primitivos, mais nativos, e
processando eles”, conta Lula Côrtes. O projeto foi batizado de Paebiru: o
Caminho da Montanha do Sol, nome inspirado numa lenda inca. Para começar a
trabalhar, a dupla dividiu o disco em quatro elementos: terra, fogo, água e ar.
A escolha dos músicos que participariam foi baseada nesse critério. “As pessoas
que tinham um espírito mais ar, a gente chamava para aquela parte, os
instrumentos que tinham mais a ver, as flautas doces, as harpas. Aí a terra,
percussão pesada e o pessoal que era mais terra”, exemplifica Lula.
Para gravar, foram chamados praticamente todos os artistas da cena
de Recife. A Rozemblit comprou a idéia e deixou o estúdio – com equipamentos
melhores do que na época de Satwa – à disposição da turma, formada por Agrício
Noya, Israel Semente Proibida,
Robertinho do Recife, Marconi Notaro, Alceu Valença, Zé da Flauta
e Laílson, além de Lula e Zé Ramalho. A gravação dividia-se pelos “elementos”:
reuniam-se no estúdio os músicos correspondentes a cada tema, tomavam chá de
cogumelo – e o que mais pintasse – definiam o conceito e criavam sem limites,
numa verdadeira experiência mística. “Às vezes, a gente preparava o estúdio
como se fosse uma sala de umbanda para receber entidades”, conta Lula Côrtes. “Era
uma viagem cada dia, o estúdio da Rozemblit se enchia de malucos e muita
doidera”, lembra Zé da Flauta.
A gravação era ao vivo, em dois canais; foram usados todos os
tipos de recursos sonoros, além dos instrumentos tradicionais e do tricórdio de
Lula Côrtes. “Agrício Noya tinha um circo de objetos sonoros, que eram a
percussão dele. Tinha uma churrasqueira elétrica antiga que, quando rodava,
tinha um som de motor do caralho. Eram sons que você ouve e parecem coisas
eletrônicas, mas eram completamente artesanais”, lembra Lula. Em uma das
músicas, há um som de um regato correndo, gravado por ele em Ingá de Bacamarte:
“A gravação era uma viagem muito louca. Ninguém pode imaginar”, afirma.
Em Paêbiru, o resultado final foram onze faixas completamente
malucas, marcadas por sons estranhos, barulhos da natureza e o indefectível
tricórdio marroquino. O disco é imprevisível – cada música vai para um lado e a
combinação de instrumentos e sons deixa claro a qual elemento a música
pertence. A seqüência “ar” é leve, marcada por sons da natureza. “Fogo” é mais
rock´n roll, com guitarras, baixo, teclados e bateria. Os batuques e
instrumentos típicos marcam a seqüência “terra”. A série “água”, além dos
efeitos especiais de corredeiras, tem uma pegada de forró, rápida e alegre, com
viola.
Não se escuta da
terra quem for santo
Não se cobre um
só rosto com dois mantos
Nem se cura do
mal quem só tem pranto
Nenhum canto é
mais triste que o final.
(“Não existe molhado igual ao pranto”, Letra
de Lula Côrtes, do disco Paêbiru, de 1975)
“O disco é o mais maluco que já se fez no país, porque o pessoal
caprichava no cogumelo, na maconha, ácido, e tinha um estúdio à disposição
praticamente o dia inteiro, coisa que nenhum músico do Brasil tinha em 1975”, afirma
o jornalista José Teles. Paêbiru foi lançado em álbum duplo, coisa rara na
época. Lula Côrtes e Zé Ramalho faziam alguns shows, sempre com Zé ao
microfone. Para Lula, era legal tocar com Zé ao vivo “por causa da força que
ele colocava no negócio”. “Às vezes, você pode estar se sentindo meio inseguro,
mas a segurança da pessoa que está fazendo o vocal é tudo, segura a banda toda,
a certeza com que você está dizendo o negócio”, define o músico.
Entre 17 e 18 de julho de 1975, logo depois da gravação do disco,
uma enchente assolou Recife. Mais de 80% da cidade ficou submersa, deixando 350
mil pessoas desabrigadas; 107 pessoas morreram. A gravadora Rozemblit ficava em
um dos bairros mais atingidos, “Afogados”, e suas instalações foram devastadas,
junto com todo seu acervo fonográfico. Foram prensados cerca de mil LPs Paêbiru
– quase todos destruídos. Sobraram apenas as trezentas cópias que Kátia Mesel
havia levado para casa.
* * *
Poucos sobreviveram para contar a história daquela cena
pernambucana. Não que tenham todos morrido; parte dos vivos, porém, tem
transtornos decorrentes do uso abusivo de drogas, e outra parte não gosta de
lembrar ou falar sobre a época. Do Ave Sangria, restaram três “sobreviventes”:
Marco Polo, Almir de Oliveira e Paulo Rafael. O vocalista dedicou a vida às
letras: jornalismo e poesia. Publicou sete livros de poesias, contos e
memórias. Apesar de ter abandonado a música, ainda tem planos de gravar um
disco. À beira dos sessenta anos, é pai de uma garotinha de três.
Eu sou da cidade
Mas nasci no mar
Tudo que eu quero
é cantar
Por enquanto
(“Por que”, do disco Ave Sangria, de 1974)
Almir de Oliveira é formado e pós-graduado em engenharia civil.
Tem uma banda, onde o neto toca bateria. É casado há mais de trinta anos, tem
quatro filhas e três netos. Recentemente, foi tirar sangue e a enfermeira lhe
disse, olhando para os nódulos em seu braço:
– Você já carregou muito peso, não foi, meu filho?
– Foi, minha filha, carreguei amplificador...
Paulo Rafael é o único integrante do Ave Sangria que mora fora da
capital pernambucana. Desde a década de 70, permanece no Rio. É produtor
musical e também planeja gravar um disco solo. O guitarrista acompanha Alceu
Valença até hoje. “Ele criou quase um vício, uma doença mental”, ri. O outro
guitarrista do Ave Sangria, Ivinho, ainda toca em Recife, mas, segundo Marco
Polo, “tem perturbações mentais provocadas pelo excesso de drogas”. Ivinho
gravou muito com a turma de Recife e chegou a tocar no Festival de Montreux em
1978, junto com Gilberto Gil e o conjunto A Cor do Som. Segundo Marco, ele era
tão bom que “comia” Robertinho do Recife, músico mais famoso, em um duelo de
guitarras. O percussionista Agrício Noya tem problemas com o alcoolismo e hoje
vive recluso. Israel Semente, o baterista, suicidou-se na década de 90. “Ele
era alcoólatra. Era um cara difícil de entender”, diz Paulo Rafael. “Mas foi
bom pra gente manter o punk rock”, brinca.
As borboletas
estão voando
A dança louca das
borboletas
As borboletas
estão girando
Estão virando sua
cabeça
As borboletas
estão invadindo
Os apartamentos,
cinemas e bares
Esgotos e rios e
lagos e mares
Em um rodopio de
arrepiar
Derrubam janelas
e portas de vidro
Escadas rolantes
e das chaminés
Mergulham e giram
num véu de fumaça
E é como um
arco-iris no centro do céu
(“Dança das borboletas”, Alceu Valença e Zé
Ramalho, do disco Espelho Cristalino, de 1978)
Trinta e tantos anos depois do furacão, Marco Polo considera o
período do Ave Sangria um “momento muito legal”: “A banda me levou a descobrir
o trabalho em conjunto com outras pessoas, me abriu um horizonte que eu não
conhecia. Alargou meus espaços como artista e como pessoa”. Paulo Rafael conta
que demorou anos para perceber o quanto era especial a maneira de Marco cantar.
“Eu levei muito tempo para entender isso. É um jeito de interpretar que é tão
peculiar, que até hoje quando eu ouço assim eu digo: ‘cara, como é lindo’. Era
uma banda sensacional. Tinha muito talento, muitas idéias, as pessoas tinham muito
pique, tem musicas maravilhosas. As letras eram acima da média. A primeira vez
que eu ouvi uma música, pensei, ‘isso é uma coisa nova’”, reflete o
ex-guitarrista, que nunca mais teve a mesma sensação ao ouvir outro som.
Laílson dedicou sua vida às artes plásticas e durante muitos anos foi chargista
político. Desde 1977, quando foi premiado no
Salão Internacional de Humor de Piracicaba, publica suas charges
diariamente do Diário de Pernambuco. Na década de 90, voltou a tocar com amigos
numa banda de blues e rock, a Laílson Blues Band, com a qual hoje se apresenta
esporadicamente.
Lula Côrtes continua morando em uma casa que está sempre de portas
abertas. Foi casado “um monte de vezes” e é amigo de todas as ex. Tem seis
filhos. Vive seus cinqüenta e sete anos de idade pela música, pelas artes
plásticas e também pela literatura. Tocou guitarra no primeiro trabalho solo de
Zé Ramalho, Avohai. Em 1980, gravou Rosa de Sangue, álbum em que assumiu os
microfones pela primeira vez, numa mistura de rock, xaxado e sons orientais,
com muita guitarra e o inconfundível tricórdio, letras hippies e viagens
místicas. O disco nunca chegou às lojas por conta de uma disputa com a
Rozemblit, já em processo de falência. Outros três trabalhos de Lula, “O gosto
novo da vida”, “A mística do dinheiro” e “O pirata” também nunca foram
lançados. Já na década de 90, gravou um disco com a banda Má Companhia, com
quem se apresenta esporadicamente até hoje. Lula não usa mais drogas e diz que
consegue abrir os portais da mente sem aditivos.
Hoje, fica chateado com o estigma de “louco”: “Eu faço três horas
de rock´n roll de cara, aí as pessoas pensam que eu estou doido mesmo. Eu faço
a loucura que eu quero, eu sou o doido que eu quero agora. Aí, parece que está
mais doido ainda”. O artista conta que estava trabalhando no Rio, na mesma
época em que Elba Ramalho regravaria “Chão de giz”. Na versão original a
guitarra era de Lula, mas Elba não quis que o músico participasse porque era
“muito louco”. Robertinho do Recife acabou fazendo a guitarra – e não mudou em
nada a frase musical original de Lula.
Dos inimigos
Temos medo ou
revolta
De quem nos ama
Temos todo
coração
Dos que se perdem
Temos pena ou
remorso
Dos que se
encontram
Vemos a
satisfação
Dos que se negam
Vemos marcas no
seu rosto
De quem não ama
Como é triste o
seu viver
De quem não vê
Vejo a falta que
ele sente
Inutilmente
Nós sentimos o
seu sofrer
Do acusado
Já se sente a
solidão
De quem não pensa
Vejo gestos tão
confusos
De quem não ama
Como é triste o
seu viver
De quem não vê
Vejo a falta que
ele sente
Inutilmente
Nós sentimos o
seu sofrer
(“Dos inimigos”, Lula côrtes, do disco Rosa
de Sangue, de 1980)
Com o tempo, a extensa produção musical daquela turma virou cult.
Em 1990, o selo Phonodisc relançou o disco do Ave Sangria. Mais para frente, o
selo americano Time News Laglag desenterrou Satwa e, segundo Laílson, existe
até uma banda cover deles no estado americano do Maine. Marconi Notaro no
Subreino dos Metazoários e Paêbiru disputam o primeiro lugar no posto de vinil
mais caro do país. A obra de Lula Côrtes e Zé Ramalho foi relançada em CD por
um obscuro selo alemão chamado Shadocks. “Outro dia, um cara me falou ‘seu som
está tocando na Anutérpia’, eu falei ‘onde é Antuérpia?’, ‘pô, o paraíso dos
diamantes’, eu falei ‘Paêbiru virou um diamante’”, conta Lula.
“O udigrudi acabou de morte natural. A maioria dos músicos foi
ficando mais velho, casando, precisaram ganhar a vida. O mais importante do
udigrudi daqui é que os músicos não se limitaram a copiar os modelos ingleses e
americanos, mas fizeram uma mistura de ritmos nordestinos com guitarras, e
acabaram com uma música bem original”, define o jornalista José Teles.
Qualquer dia
desses
A gente se
encontra
Pra bater um papo
calmo
Um papo calmo
E calmamente
conversar
Conversar
Bater na porta da
alma
Longe da loucura
Longe da loucura
E do barulho
Dessa cidade
(“Balada da Calma”, Lula Côrtes, do disco
Rosa de Sangue, de 1980)
Os sobreviventes são amigos até hoje. 35 anos depois de Nova
Jerusalém, reunido com Marco Polo e Almir de Oliveira em sua casa, Lula Côrtes
filosofa:
– Agora é agora, o tempo não espera por ninguém, não pára.
E Marco:
– Essa está no grupo de frases fantásticas: o tempo não espera por
ninguém, o tempo não pára.
– Não espera mesmo, nem retroage. O máximo que a gente pode ter
são boas lembranças. Eu fui andando com tudo que veio atrás, está acumulado de
tudo aquilo, é impossível você olhar a mesma árvore, porque ela não franze...
–, filosofa o artista.
– Você não olha nunca a mesma árvore. É outra árvore – diz Marco.
– É outra?
– Não tem jeito –, responde o jornalista, rindo.
– Nada, nada previsível – define Lula, dando risada.
E Marco Polo, abraçando o velho companheiro, às gargalhadas:
– Eu gosto desse doido, para caramba. Eu amo esse homem.
quAse
famosos
vímana | 165
Eles eram os típicos nerds – ritmados. Estudavam música por horas,
eram instrumentistas virtuosos e buscavam a perfeição constante. Uns juram que
eles estavam mais pro funk que para o lisérgico. Outros os classificavam como
insuportavelmente progressivos. A verdade é que esta foi uma banda de fases com
sons bem diferentes. Enfim, rótulos não explicam a história surpreendente
desses músicos que estiveram a um passo do sucesso internacional, que chamaram
a atenção de empresários do Led Zeppelin e fizeram com que o tecladista suíço
Patrick Moraz – substituto de ninguém menos que Rick Wakeman numa das maiores
bandas de rock progressivo do mundo, o Yes – desembarcasse no Brasil,
instituindo um regime semi-escravo de trabalho com o intuito de dominar o
mercado fonográfico como a maior banda de todos os tempos, que ainda estava por
vir e foi decapitada pelo punk. Dali saíram astros pop como Lulu Santos e
Ritchie, além do inimigo número um do sistema, Lobão. Assim começa a história
da “carruagem dos deuses”, ou para os que preferem, o Vímana.
“O Vímana era
mesmo uma banda impressionante - o que não quer dizer necessariamente boa. Seus
aplicados músicos eram precisos e virtuosos. Não pertenciam à corrente, então
defendida pelos Mutantes, que emulava os rococós do Yes, porque tinham maior
inventividade - em seus shows de três horas de duração, entre um solo de
guitarra de vinte minutos e um de bateria de quinze, sempre era possível
encaixar um dueto de violões com Lobão e Fernando, que resvalava no chorinho.
Pesquisavam folclore brasileiro, assim como o Jethro Tull pesquisava suas
raízes celtas. Por outro lado destacava-se da corrente do “rock-pauleira” de grupos
como o Made In Brazil porque era menos tosco e preconceituoso, mais sofisticado
e culto.”
Ricardo Alexandre, jornalista, no livro
“Dias de luta”
O inglês Richard David Court já se aventurava em experiências
hippongas pelas bandas de sua terra natal, em meados de 60. Participara de um
projeto chamado Everyone Involved, que gravou num único LP distribuído
gratuitamente, como forma de protesto contra os planos de modificação do
Picadilly Circus, em Londres. Foi lá que conheceu os então Mutantes Liminha e
Rita Lee, que prontamente o convidaram para participar da comunidade
bicho-grilo que formariam na Serra da Cantareira. Nada como fumaças nunca antes
fumadas para alegrar sua vida. O convite foi aceito, e cá está desde então. O
inglês loirinho virou referência para a hipalhada paulistana – lendas revelam
que era ele quem garantia o abastecimento de ácidos em São Paulo, trazendo, de
uma só vez, uma caixa de sapato lotada com os coloridos sunshines da Europa.
Sob a alcunha de Ritchie, passou por grupos como Scaladácia, Soma e A Barca do
Sol até ser descoberto por Lulu Santos – naquela época, Luiz Maurício.
Luiz Maurício Pragana dos Santos era fã incondicional de Sérgio
Dias, guitarrista mutante. Não há quem tenha conhecido o jovem rapaz na época,
que hoje não comente que um dos maiores popstars do país carregava
instrumentos, ligava e estava sempre perto de seu mestre valvulado. Tiete seria
a palavra mais apropriada. Quando não estava sendo chato ou puxa saco, Lulu,
que também freqüentava a comunidade na Cantareira (óbvio), arriscava alguns
riffs em sua banda, o Veludo Elétrico. Com sua saída do Veludo, a alma
artística de Lulu agonizava – e não podia ficar longe dos holofotes.
Não há relatos exatos de como surgiu o Vímana. Os próprios
integrantes do grupo não se lembram ao certo da ocasião. Sabe-se que na mesma
época em que acabou o Veludo Elétrico, grupo de Fernando Gama e Lulu Santos,
também se aposentavam os garotos do Módulo 1000, de Luiz Paulo Simas e
Candinho. O baterista Candinho conta que o Vímana começou no dia em que
terminou o Módulo 1000. “Estávamos num festival em Pedra Azul (cidade no norte
mineiro, encravada no Vale do Jequitinhonha), e resolveram que era nosso último
show. Eu e o Luiz Paulo tínhamos uma sala lá que a gente ficava tocando, e
apareceu
o Fernando Gama. A gente se encontrou fazendo música na hora”.
Convidaram Lulu Santos para assumir as guitarras do novo grupo e voilá: estava
criado o embrião do Vímana.
Fizeram duas grandes apresentações com esta formação. Ensaiavam
muito, mas os shows eram raríssimos. Esta foi a fase mais psicodélica do grupo,
acredita Luiz Paulo. “Essa primeira fase era a mais experimental, mas já indo
mais pro rock progressivo, com músicas elaboradas... Se bem que a gente elaborava
muito, tínhamos poucas músicas e alongávamos elas pra fazer um show”, lembra o
tecladista. Estrearam em 1974, quando foram convidados para tocar no Teatro
João Caetano, no Rio de Janeiro. Os cariocas aceitaram prontamente o convite
para a apresentação, que aconteceria junto com outros grupos já conhecidos pelo
público desbundado: O Terço, Mutantes e Peso. “Só tocamos quatro músicas, que
prolongamos pelo show inteiro”, conta Luiz Paulo. Entretanto, as poucas
composições já revelavam o potencial do quarteto que, em seguida, subiria no
palco da primeira edição do festival Hollywood Rock, iniciativa de Nelson
Motta, que aconteceu em 1975.
O evento foi uma grande catástrofe, conforme relatam os que
estavam presentes. Problemas no áudio comprometeram diversas apresentações,
inclusive a dos garotos do Vímana, que ao começarem a tocar os primeiros
acordes de “Perguntas” ficaram na mão da aparelhagem. Na precária gravação em
vídeo do show, é possível ver a perfeição dos teclados de Luiz Paulo, alguns
passinhos ensaiados por Luiz Maurício e o figurino feito de algum tipo de
tecido brilhante, bordado com lantejoulas – cada integrante vestindo uma cor.
Porém, o que aparentemente seria uma banda entrosada nas entranhas
escondia hormônios efervescentes. Fernando Gama lembra que as brigas eram
constantes e que uma vez, se não lhe falha a memória, numa audição no Cinema
Bruni, o quarteto discutia ferozmente no camarim. Eis que surge o jornalista
Ezequiel Neves, desesperado, pedindo o fim da discussão. Os microfones estavam
ligados e a platéia acompanhava o arranca rabo de camarote.
Queimo e perco em
menos que segundos,
Jogo tudo pra
batalha, eu pago pra curtir
Um prazer já não
dura tanto tempo,
Quando vai passar
tua onda, continua aqui
(Trecho de “Zebra”, do compacto homônimo,
1977)
Logo após o Hollywood Rock, Candinho, que freqüentemente saía do
Rio de Janeiro rumo à terra da garoa, distanciou-se do grupo, até que resolveu
abandonar as baquetas de vez. Lulu Santos revelou, em entrevista a Pedro
Alexandre Sanchez na Folha de S.Paulo, 1997, que o baterista desistiu da
carreira por motivos de crença; “virou discípulo do guru Maharaji”.
Candinho rebate e diz que, sendo líder natural do grupo por sua
musicalidade, foi praticamente retirado da banda: “O Lulu entrou (no Vímana) e
era o trampolim pra ele se dar bem. Ele ficou conhecendo o Ezequiel, o Nelson
Motta e foi trabalhar na Globo”. Brigas à parte, as lembranças desta época
ficaram para sempre em sua vida. Em homenagem à banda, batizou sua filha de
Vymana, que significa disco voador em sânscrito, ou ainda carruagem dos deuses,
na cosmogonia hindu. E o grupo ficara desfalcado, afinal, como diria o próprio
Lobão, uma das coisas mais impressionantes na banda era a bateria de Candinho.
***
Lulu Santos, então líder do Vímana, sentia falta de alguém que
dividisse os vocais com ele. Lembrou do inglês que conhecera em São Paulo. Luiz
Paulo também já o conhecia de um show do King Crimson realizado em Londres,
onde se encontraram em 1972. Richtie já morava no Rio e estava saindo da Barca
do Sol. Não pensaram duas vezes: Lulu levou-lhe uma Maria Mole como oferenda,
fez o pedido oficial e... sim! Conseguiu convencê-lo a entrar para o grupo.
vímana | 167
João Luiz Woenderberg Filho era um garoto de alma rebelde.
Carioca, conta que aos três anos de idade já tocava bateria. Aos 17, em 1974,
sonhava em seguir carreira erudita. Cansara de bumbos e pratos. Queria tocar
violão. Repetiu o ano no Colégio São Vicente de Paula. Achava-se mais esperto
que os colegas de turma, mais novos, que quando perguntavam o que João Luizinho
queria ser quando crescesse, ficavam embasbacados com a resposta: músico.
Mergulhado em sua realidade paralela e nos estudos do violão clássico, ele
conheceu o que viria ser seu mentor e grande responsável pela sua entrada no
Vímana: Inácio, o presidente do Grêmio Estudantil. “Ele vinha todo dia com
discos de rock progressivo e eu tava numa fase que eu renegava tudo. Eu tava
renegando o rock”, lembra. Mas o ritmo, que anos depois viria a se tornar a maior
arma de protesto do músico, incansavelmente contraventor, caiu no seu gosto
quase que por osmose. Um belo dia, Inácio o levou, a contragosto, a um show do
Vímana. Não teve mais volta. “Eu menosprezava a banda, mas quando vi achei
sensacional. O cara que eu achei mais sensacional foi o Candinho. Eu já tinha
visto o Módulo 1000 no Teatro da Praia e eu os achava meio o Black Sabbath
brasileiro. O Candinho sempre me chamou a atenção, porra, ele toca pra caralho,
alto nível”, lembra. Poucos meses depois veio a notícia do desligamento de
Candinho.
Inácio continuava sua missão de catequizar Lobão e fazê-lo
esquecer a carreira erudita. Um dia, já sabendo do desfalque, encontrou Lulu
Santos numa galeria. Apresentou-se e comentou que tinha um amigo baterista que
gostaria que conhecesse. Só havia um problema – Lobão era menor de idade. Lulu
torceu o nariz, pensou um pouco e marcou uma audição para a mesma semana, no
teatro Casagrande, onde o grupo ensaiava o espetáculo A Feiticeira, com Marília
Pêra. No dia do encontro, Inácio chegou no colégio e comentou sua façanha com o
amigo. Ao contrário do que pensava, Lobão odiou a idéia e recusou-se a ir. Há
mais de seis meses sem tocar, o garoto não se julgava apto a substituir aquele
que considerava o maior baterista do Brasil. Como em um grito de misericórdia,
Inácio insistiu e deu sua cartada final: a bateria do adolescente resmungão já
estava montada no teatro.
Era só ir e tocar. Lobão não contava com a astúcia de Inácio e
viu-se impossibilitado de continuar recusando. Fechou a cara e foi para a jam
session.
Com cara de mau, encontrou os integrantes de sua futura banda e
começou a disparar: “Odeio rock”. Ritchie assustou-se. Luiz Paulo já não curtia
a idéia de ter um menor de idade na banda. Tudo parecia sinalizar que, antes
mesmo de começar, a tentativa seria frustrada. Lobão sentou-se atrás de sua
bateria com idéias mirabolantes na cabeça. Decidiu, ofensivamente, tocar de uma
forma inacompanhável para descartar logo de cara a sua entrada no grupo. Mas,
para sua surpresa, ao surrar o instrumento em um ritmo louco, a la escola de
samba, foi seguido pelos outros músicos em uma jam session que durou mais de
quatro horas. Depois do transe, questões práticas ainda martelavam a cabeça dos
integrantes do Vímana – Lobão era menor de idade e isso daria uma bela dor de
cabeça. O veredicto veio da boca de Lulu Santos: “Quero esse cavalo holandês
tocando com a gente”. Palavra final dada, Nelson Motta acabou tornando-se tutor
do jovem João Luiz e Ritchie assumiu a representação da tutela oficial. O
Vímana estava pronto para alçar vôos maiores.
***
“O universo do
rock nos anos 70 era algo tão marginal (não apenas no sentido estético, mas no
social mesmo) que era impossível que todo mundo que freqüentava os shows não se
conhecesse e, vez por outra, tocasse junto. ‘A sensação que eu tinha era a de
que, no Rio de Janeiro, havia quinhentas pessoas que gostavam de som’, lembra
Lulu Santos. ‘Tinha sessão à meia noite do ‘The song remains the same’?
Apareciam as quinhentas pessoas. Tinha show do Terço no Tereza Raquel? Tava lá
aquele povo’. E, nesse microcosmo, o Vímana acabou reinando soberano. Apesar de
praticamente desconhecido fora do estado do Rio, o grupo chegou a tocar em
festivais como o Som, Sol e Surf, em Saquarema, no
verão de 1976.
Mantinha curtas temporadas em teatros da capital carioca, na Ilha do Governador
e no Campo dos Afonsos, e em outras cidades, como Niterói e Petrópolis. Era,
tudo considerado, uma superbanda do underground da época.”
(Ricardo Alexandre, Dias de Luta)
Com a formação completa, o Vímana desembestou a produzir. Lobão
caiu de cabeça numa crise de identidade e encontrou apoio nos colegas de banda
– que, ao contrário do que pensava, eram pessoas sérias, praticamente anti-roqueiras,
muitas vezes até avessas ao estereótipo desbundado. Existia o lado sexo, drogas
e rock ‘n’ roll, mas tudo de forma muito bem organizada. Logo após sua entrada
na banda eles vieram para São Paulo, onde realizariam algumas apresentações.
Hospedaram-se num apartamento montado por Nelson Motta, em Higienópolis. Foi lá
que caiu na real: “Eu era um cara super protegido, virgem, não tinha fumado
maconha e estava quase com 18 anos. Aí pensei: vou entrar nessa banda e vou ter
muitas mulheres, e aconteceu que o processo de entrada foi muito doloroso.
Minha mãe ficou puta, disse que não ia querer eu com aqueles maconheiros e me
expulsou de casa”, lembra.
Lobão havia parado de comer carne e numa paranóia erudita compôs
“As Vaquianas”, música de completa compaixão pelas bovinas. Quando não estava
tocando, passava a tarde em frente à televisão, assistindo seriados de ficção
científica e montando aviõezinhos. Tinha que ser assistido diariamente por
problemas de saúde – sofria de disritmia. Toda noite, Ritchie lhe trazia seus
compridos, para que não deixasse de tomar. Eram praticamente uma família.
“Lulu, assim como a minha mãe, me chamava de João Luizinho”, diverte-se.
Recém introduzido na maioridade, aos poucos começou a ingressar na
vida real. De volta ao Rio, sem casa, comida e roupa lavada, dormia na praia,
até ser convidado para morar com Luiz Paulo “numa casa na Rua Teresópolis,
caindo aos pedaços”. Ensaiavam até 10 horas por dia e, nos tempos livres,
mergulhavam em leituras complexas. A vida dos integrantes da banda era,
praticamente, 100% voltada à música; o que não fosse exatamente ritmado
acabava, de alguma forma ou outra, influenciando acordes e riffs.
“Quando a gente morava junto, o Luiz Paulo saía pelado do banheiro com a toalha
na boca, compondo, olhando pra cima... tocando teclado no braço com a mão
direita”, diz.
***
“Luiz Paulo, é
sem dúvida, um dos melhores tecladistas eletrônicos que temos. Seu equipamento
é complexo e muito bem usado. Foi um dos pioneiros do sintetizador no Brasil.
Usa piano acústico com captador Hellpinsteel, um Fender Rhodes 88, órgão
Hammond L-102, Sintetizador Mini-Moog e Max-Korg, Clavinet Hohner D6 e uma mesa
Peavey de 8 entradas, onde combina todos os teclados e manda para um amp Sunn
de 120W. O guitarrista Lulu é um músico de estúdio muito versátil e com ótimo
desempenho no palco. Está usando uma Stratocaster Fender, uma Rickenbacker 366
de 12 cordas, uma pedaleira e um amp Twin Reverb Fender. Na bateria Tama
Imperial, um modelo semelhante a Octaplus Ludwig, com 8 peles afinadas,
senta-se Lobão, um garoto de 18 anos que estudou seis de violão clássico, mas
optou pela vibração e o balanço da bateria. Richard Court, o Ritchie, é um
inglês que está a quatro anos no Brasil. Ainda não tem pronúncia de “native
speaker”, o sotaque carioca, mas isso não chega a preocupar na sua
mise-em-scene: Ritchie é certamente um dos mais expressivos cantores em
potencial.”
(Revista Música, texto de Paulo de Castro,
1976)
Os shows do Vímana eram marcantes e sempre lotados. Inspirados na
performática Genesis, os garotos eram enérgicos e Ritchie, o front man, dava um
show à parte – já havia sido mágico e usava esta experiência para incrementar
suas interpretações. Entretanto, apesar da platéia adorar, o clima era cada vez
mais tenso no reino da babilônia, ou melhor, na banda do inglês. “A petulância,
que é comum entre jovens, fez com que as nossas performances mais parecessem
brigas de galo, com todo mundo tentando solar ao mesmo tempo, até mesmo nas
horas das partes cantadas. O resultado era um caos semi-controlado. O público,
por sua vez, aparentemente adorava, ou ficava em estado de choque, dependendo
de seu grau de iniciação como ouvinte”, lembra Ritchie.
Backstage the bearded lady,
Looks behind to see yesterday,
Hope rise in the painted eyes,
And the show goes
on
(Trecho de “Masquerade”, do compacto Zebra,
1977)
Como disse o cantor, as apresentações do grupo eram marcadas pelos
solos intermináveis. Quinze minutos de guitarra, seguidos por vinte de bateria.
Pausa. Lobão saía da bateria e, junto com Fernando Gama, sentava-se na frente
do palco e tocava violão clássico - Villa-Lobos. Luiz Paulo abandonava
momentaneamente o progressivo e seus famosos sintetizadores e desembestava num
chorinho. “Sofremos com a ditadura de nós mesmos. Muita briga para pouca
música. Era um inferno musical, um som catártico”, completa Ritchie. Pareciam
querer, de qualquer forma, mostrar ao público um pouco de todas suas influências.
E elas eram muitas.
Fernando Gama era muito na dele. “Uma vez, ensaiando no teatro
Casagrande, estou eu lá, tocando bateria e vendo a banda inteira. De repente, o
Lulu começou a peitar o Fernando, muito burburinho. Daqui a pouco parou todo
mundo e eu só vejo o Lulu, com aquela boca enorme, falando sem parar. Então
veio o Fernando e eu comecei a prestar atenção:
-Lulu, me deixa só falar uma coisa.
-Não, você não tem razão, não vai falar nada.
- É que você tá com bafo de merda, por favor, pára de falar...
Aí Lulu esmoreceu, saiu frágil, chorando, ofendidíssimo. A gente
ria, e o Fernando tentando explicar. Depois de um tempo ele volta, olha pra
todo mundo teatralmente, encara todos, pega uma craviola e toca uma música
linda, muito canastrona, ‘Amanhã, eu prometo, eu vou ser outra pessoa, espere
até amanhã’”, lembra Lobão. E as discussões eram sempre assim, entre egos
estelares e almas de moleques.
***
O futuro do Vímana parecia estar traçado. Seguindo a ordem natural
dos fatos, depois de ensaiarem horas e mais horas por dia, lotarem casas de
espetáculo, carregarem junto em suas apresentações legiões de fãs, conseguiram,
enfim, o que faltava: um disco. Luiz Paulo era secretário de Nelson Motta e,
como já havia criado o famigerado “plim plim” da TV Globo, tinha certa
influência no mercado fonográfico. Eis que surge o primeiro estúdio com 24
canais no Rio de Janeiro e, servindo na verdade como cobaias, os meninos
descolaram um espaço no moderníssimo Level, em Botafogo, para registrarem suas
loucuras. Com o engenheiro de som americano Don Lewis e o produtor carioca Guto
Graça Mello, gravaram uma demo tape que seria logo em seguida aceita por uma
grande gravadora – resquício das influências de Luiz Paulo. Em termos
tecnológicos, o Vímana era um grupo anos à frente de sua época. “Eu não
entendia porra nenhuma, e no meio dessa gravação tinha o técnico que era meio
que um hippie velho, que adorava Janis Joplin, e eles ficavam se drogando,
falando inglês, falando de canal e eu não entendia nada. A minha sensação era
que eles eram muito inteligentes e eu era burro, porque o Vímana era de uma
tecnologia de ponta, tinha um puta equipamento. Fui, aos poucos, aprendendo a
trabalhar”, recorda o caçula.
174 | psicodelia brasileira
Com a demo em mãos, Luiz Paulo apresentou-a às pessoas certas na
Som Livre. “Durante poucas sessões em meados de 1976, seu grupo pôde registrar
todo o repertório, de peças de intrincada estrutura melódica, suítes enormes e
temas bizarros, composto ao longo de dois anos de carreira, parte em português
(como ‘Zebra’, ‘Palavras’ ou ‘O mistério’), parte em inglês (como ‘The secret
garden’ ou o funk dissonante ‘On the rocks’). Das sessões de gravação, duas
músicas, ‘Zebra’ e ‘Masquerade’, foram pinçadas e lançadas em compacto da Som
Livre no início de 1977. ‘Zebra’ era a primeira tentativa do quarteto de soar
pop, conciso, ‘enxuto’, como defendia Lulu. ‘Masquerade’ ainda era um
progressivo clássico, mas tinha menos de dez minutos, uma raridade no
repertório do grupo”, escreve Ricardo Alexandre, em Dias de Luta.
No entanto, o que parecia uma maravilha não cheirava a flores,
como a maioria pensa. O compacto Zebra estava pronto e foi o máximo que a banda
conseguiu - um LP de verdade nunca chegou às lojas. A frase clássica quando o
por quê é questionado aos membros do grupo é: a gravadora disse que não havia
público para o rock. Eles lotavam suas apresentações, tinham até fã clube e não
havia compradores para um álbum completo? Lobão tem outra versão para os fatos:
“O compacto já estava nas lojas, a gente tinha contrato com a Som Livre, e a
ordem natural da coisa era o LP sair. Mas aí o Patrick Moraz veio e falou
‘Vocês precisam rescindir o contrato e não podem dizer, é ultra-secreto, pra
Som Livre que é uma grande coisa, tem que mentir’. Então cada um inventou uma
desculpa esfarrapada pra contar pro cara da gravadora, Guto Graça Mello. Um
disse que queria ser professor, outro ia estudar macrobiótica... Mas o Guto já
sabia e tivemos que falar que tínhamos abortado por causa do Patrick, e como
era tudo uma fita teste, devem ter apagado”. Como lembrou o baterista, ninguém
guardou as gravações feitas no Level e, por mais estranho que pareça, ninguém
sabe onde foram parar.
***
vímana | 175
Festival de Saquarema marcado e o Vímana com uma baixa – Fernando
Gama, que estava com hepatite. Entretanto, a doença do baixista não impediu a
participação dos garotos que, não podendo tocar sem o colega, foram trabalhar
como roadies. Lá conheceram Patrick Moraz, tecladista suíço que entrara no Yes
para substituir Rick Wakeman. Acompanhado de sua bela esposa, a modelo Liane
Monteiro, grávida, empolgou-se com os garotos. Acabou entrando para o Vímana,
que ele mesmo queria transformar na Patrick Moraz’s Band. O início do fim da
trajetória do grupo.
O gringo, nada bobo, prometeu mundos e fundos aos rapazes
cariocas. Parecia um conto de fadas. Eles acabariam se tornando a maior banda
de rock progressivo do mundo, o momento era aquele, simbora ensaiar! “Eu
lembro, era uma época que morávamos num sítio em Itatiaia, que tava com os
Mutantes, mas como eles foram pra Itália, a gente ficou com o sítio. E nós lá
pensando, porra, vamos pra Europa, uma aventura, banda concorrente do Yes. Tudo
isso ensaiando, fumando um baseado no meio da nossa horta de inhames, super
macrobiótico, uma coisa ultra-hippie”, lembra Lobão. Mas com mais um ego
gigantesco e suíço adicionado à banda, nada mais óbvio do que as brigas
voltarem a atormentar a linearidade da carreira do Vímana.
Lulu Santos e sua usual implicância com Fernando Gama deram o
pontapé inicial. Um belo dia, pensando alto à beira do riacho: “Eu sou o
Vimana. Quando chegar na Europa vou trocar o Fernando pelo Alphonso Johnson, eu
quero o melhor baixista do mundo”. Lobão de tocaia, prestando atenção na
egotrip de Luiz Maurício, ficou inconformado, saiu correndo e foi logo avisar
Moraz. O novo líder do grupo achou aquilo um absurdo e, como já não simpatizava
com Lulu e tinha planos de também substituí-lo na Europa, expulsou-o da banda.
“E nós ficamos de certa forma satisfeitos, porque ele tava enchendo o saco”,
lembra o baterista fofoqueiro.
Como as pessoas
fogem da raia,
Na hora da barra,
Como elas te
deixam na mão
Volto meus
sentidos pro que paira no ar,
Nesse momento o
que recebo de volta? – Nada
O coração aberto
resolve,
A diferença entre
o bem e o mal
(Trecho de “Perguntas” da fita demo gravada
em 1976)
Problema resolvido e a paz foi finalmente instaurada no Vímana?
“Não. Tinha muita pressão
do
lance do Patrick, e ele era uma pessoa caótica. Tinha essa coisa de misturar
Mangueira com rock progressivo. Era tudo muito pirotécnico”, conta Lobão. A
vida de curtição desapareceu e a música virou
praticamente um fardo carregado pelos garotos cariocas. Viviam sob um ritmo
enlouquecido de ensaios, impostos por Patrick, que chegavam a durar até 12
horas. Os meninos eram explorados até a última gota. Tinham que tirar
partituras dos maiores nomes da música mundial, tocar em compassos complicadíssimos.
Mas aquela exigência toda tinha seus motivos: Patrick Moraz convidava
empresários e produtores de superbandas para assistirem aos ensaios do Vimana.
“Chegava o Peter Grant, empresário do Led Zeppelin, cheio de caveira. Vinha o
Quincy Jones...”, cita Lobão.
Em matéria publicada na revista gringa Circus Magazine, em 8 de
dezembro de 1977, sob o título “Moraz Gets Jazzy: Ex-Yes Keyboardist Catches
Latin Fever”, o tecladista revela suas idéias de dominação do mercado
fonográfico. “Ano que vem, entretanto, seus planos o trazem de volta aos EUA,
na maior parte do tempo. Seus planos coincidem com seu terceiro disco (solo) e
uma grande turnê, provavelmente em março, 1978. Ele está montando uma banda
‘fantástica’, com cinco músicos, incluindo ele mesmo, Ritchie Court, um inglês
flautista e compositor, que também canta, e um segundo tecladista, Louis Paulo
(sic). O grupo viajará sob a logo de Patrick Moraz Band e terá um núcleo
opcional de dois a cinco percussionistas brasileiros e alguns backing vocals. ’Minha
nova música vai fazer as pessoas dançar. É mágico, você imagina, quando as
pessoas escutam. Nos divertimos ensaiando no Rio. Tem um paralelo entre a selva
de pedras de Nova York e a verdadeira selva em que estamos, no Brasil’”.
Mas o sucesso dos ensaios e a farta perspectiva não significavam
dinheiro no bolso. Depois de voltarem ao Rio de Janeiro, os garotos ensaiavam
todos os dias na casa de Patrick, na Estrada do Juá, onde havia sido
recém-montado um estúdio. Lobão era hippie – assim como seus outros
companheiros de banda, não se importava com salário e ia todos os dias, de
Botafogo até o local marcado, pedalando em sua bicicleta de três marchas.
Tocava
insanamente e voltava. Depois de algum tempo nesse vai e vem, não
só ele, mas como os outros integrantes, estavam surpreendentemente magros,
definhando. Eis que entra na história a protagonista de uma das lendas mais mal
contadas do rock brasileiro – a top model Liane Monteiro, esposa de Moraz.
Liane era linda, 12 anos mais velha que o caçula do Vímana, e
havia acabado de parir mais um herdeiro de Patrick. Conhecia o tecladista há
tempos e sabia que, no fundo, ele se aproveitava da boa vontade e do sonho
louco dos garotos. Também assustada com a magreza de seus novos amigos, começou
a cozinhar para eles durante os ensaios. Durante todo o ano, por problemas de
visto, Patrick volta e meia saía do país por três meses. Ela ficava sozinha com
os filhos e os recém adotados músicos. Numa dessas idas de Moraz, começou a
flertar com Lobão. O papo começou quando ela foi alertar o menino sobre seus
direitos. Eles deveriam exigir de seu marido um salário – coisa que não passava
por sua cabeça. A paquera seguia e Patrick começou a desconfiar. Ficou muito
amigo de Fernando Gama e passou a elogiar Lobão de forma exagerada.
Desconfiado, foi passar três meses na Inglaterra e, quando voltou, tinha uma
triste surpresa. “Ele sempre voltava muito confiante, apesar da gente não ver o
dinheiro, via a movimentação... A partir daí ele veio com umas sacolinhas, com
ar meio patético. Abriu e tinha milhares de coisas, mas que foi a primeira vez
que eu acho que eu morri e que pensei que depois dali não tinha mais salvação,
que eu não ia sobreviver. E ele dizia: olha, acabou, cara. Não tem mais rock
progressivo na Inglaterra, olha só: agora é punk, Sex Pistols, Elvis Costello,
Buzzcocks, Clash... E a gente viu que não tinha mais nada a ver”, recorda
Lobão.
Triste, Patrick deixou mais uma vez do país. Segundo o baterista,
Liane aproveitou a deixa, telefonou para o garoto e o convidou para sair. Foram
para um motel na Urca e depois para a casa dela. De lá, João Luiz só saiu
quatro anos depois, quase que fugido. Virou dona de casa, não era autorizado
pela mulher a ir até a esquina, criava seus filhos e, entre leituras complexas
e conversas com intelectuais, pensava em 1001 maneiras de escapar – que logo se
transformaram em formas de cometer suicídio, tamanha era a depressão e o cabresto
imposto pela musa. O garoto frágil e superprotegido não esboçava forças para
sair daquela situação. Amava a modelo mas, ainda jovem, sentia falta de viver
sua vida independentemente.
Em uma tentativa frustrada de acabar com a própria vida, tomou uma
cartela de antidepressivo com meio litro de vodka. Recebeu um telefonema de
Arnaldo Baptista convidando-o para ensaiar um de seus novos projetos: um trio
com ele e Arnaldo Brandão. Quando os Arnaldos chegaram na casa de Lobão, o
garoto sentou no banco de sua bateria, levantou as baquetas e caiu para trás.
Foi levado para o hospital por Arnaldo Baptista. Lobão ficou em coma e
internado por um mês e o mutante voltou para casa em estado paranóico – foi
internado e se jogou da janela. A relação esgotou-se de vez: “Não foi uma
aventura. Eu tenho o maior respeito por ele (Patrick). O que aconteceu com o
Patrick aconteceu também com o meu melhor amigo Julio Barroso. Eu acabei
ficando com a mulher do Julio também. E não tem nada de vingança, a gente
aprendeu coisa pra caramba. É isso aí, as coisas acontecem”, justifica. E como
ficou o marido traído? Puto, óbvio, mas agiu de forma especialmente civilizada,
segundo Lobão. Ponto final.
Com o surgimento do punk, o Vímana realmente perdeu espaço. “The
dream is over” e cada integrante seguiu seu próprio caminho. Lulu Santos
tornou-se uma das maiores estrelas do pop nacional. Ritchie estourou nas
paradas de sucesso com o hit oitentista “Menina Veneno”. Lobão integrou a Blitz
e logo depois seguiu em uma muito bem sucedida carreira solo. Luiz Paulo atua
como tecladista desde então em Nova York, onde mora, e Fernando Gama fez
sucesso no Boca Livre; e continua sua carreira musical no Rio de Janeiro, onde
vive. É o fim da epopéia.
Sempre
R AINHA
“
A época eram os anos 60, e o sentimento era de transgressão,
contra a sociedade, contra os valores morais, contra o governo, contra o que
estava estabelecido. Enquanto a juventude que habitava o cenário da contracultura
brasileira caía no desbunde através de experiências sonoras, escritas ou
visuais, estimuladas pelas convidativas portas da percepção que as drogas
escancararam, o então jovem Serguei preferiu incorporar todas essas formas de
expressão em uma só: ele mesmo. Longos cabelos emendados, tingidos de amarelo e
enfeitados por flores, os olhos carregados de maquiagem e iluminados por lentes
de contato azuis, um sol dourado desenhado no rosto, batom na boca, unhas
pintadas de preto – assim é a figura desse carioca, uma verdadeira personificação
ambulante do psicodelismo, que está nesse mundo há 74 anos vivendo seu maior
sonho: o rock’n’roll.
Músico, cantor, performer, fã; acima de tudo, Serguei é o rock.
“Ele representa isso em sua forma de viver, de se vestir, de adoração, como um
culto”, acredita o diretor de TV João Henrique Schiller, que na década de 90
escreveu a biografia Serguei, o anjo maldito. Não é raro encontrar na mídia
referências que o apontam como um dinossauro do gênero. “Com certeza não, ele é
anterior a isso!”, brinca João. A verdade é que Serguei atravessou gerações: ele
estava lá quando Beatles, Stones e tantos outros aconteceram, viu Woodstock e
os grandes festivais hippies de perto, bateu de frente com a ditadura no Brasil
e foi para os Estados Unidos viver entre as estrelas, mas acabou tendo no Rio
de Janeiro seu momento de glória maior, uma verdadeira noite de astro, já
praticamente na terceira idade. “E está aí até hoje”, resume João. “Percebemos
isso, mas sem entender o porquê. E essa mesma coisa que faz a gente não
entender Serguei é o que faz a gente não esquecer Serguei”.
“Poucos no Brasil
incorporam tão bem o espírito dos anos 50, 60 e 70 como esta síntese paranormal
de Iggy Pop, Rod Stewart, Steve Tyler, Mick Jagger, Klaus Kinski, Bela Lugosi e
Dercy Gonçalves – ele é tudo o que qualquer outsider tentou ser, mas teve medo
de desbundar”
Arthur Veríssimo, repórter gonzo, em
matéria na revista Trip 107
Serguei vive em Saquarema, no litoral do Rio de Janeiro, desde a
década de 80. Ao invés de “Lar, doce lar”, nos dizeres acima da cerca branca de
seu jardim lê-se “Templo do Rock”. Sua casa é um verdadeiro museu, que mistura
a história do gênero com a dele própria. Por todos os cantos estão espalhados
ícones como Rolling Stones, The Doors, Led Zeppelin, Beatles, Nirvana e Jimi
Hendrix, entre outros. A cantora Janis Joplin, amor da vida de Serguei, tem seu
próprio altar. Na espaçosa sala principal, de linhas retas e pé direito alto,
assim como no corredor que leva ao quarto e ao banheiro, as paredes são
cobertas por pôsteres, capas de discos, fotografias e matérias de jornais, com
títulos como “Setentão psicodélico”, “Roqueiro diz que MPB é música de corno” e
até “Serguei contra a CIA”.
“O rock’n’roll é música, é gênero musical, mas também é atitude e
estilo de vida”, ensina ele. Subindo as escadas encontra-se mais um espaço
abarrotado de referências, praticamente
uma vitrine dos anos 60 e 70, com um colchão no lugar onde deveria
haver um sofá. “As pessoas sentavam no chão, nas almofadas, fumavam maconha
deitadas na cama. Botavam
os incensos, rasgavam os jeans cada vez mais e deitavam os
cabelos, só porque todo mundo dizia ‘não vai cortar o cabelo, menino?’. Aí os
caras desciam os cabelos pra contrariar o que estava estabelecido pela sociedade”,
lembra Serguei, que decorou o Templo do Rock sozinho, com inspirações
lisérgicas de sua própria cabeça. Segundo ele, tudo pelo desespero de poder
mostrar aos outros a grandiosidade de uma época.
Em seu quarto não existe um armário, mas sim uma arara com as
roupas penduradas à mostra – “é muito artística, lembra o teatro, os hippies”,
afirma –, enquanto o banheiro mais parece um camarim, com várias imagens
coladas desordenadamente no espelho iluminado, entre elas a do ator Henri
Castelli, a do comediante Charles Chaplin e uma outra de Janis, desta vez
tascando um beijo na boca de Serguei. “Agora você vai ver um quarto
psicodélico”, avisa o roqueiro, abrindo uma porta no corredor. Dentro do cômodo
quadrado sem janelas, a única fonte de iluminação é uma lâmpada de luz negra,
que extrai tons lisérgicos
das flores brancas penduradas em seu fio, das almofadas coloridas
jogadas no chão, das paredes rabiscadas e do rosto de Bob Marley, que se
destaca entre outros pôsteres. “A psicodelia é uma coisa universal, é o que
está nesse quarto”, explica. “São os discos, as revistas, os espelhos com
flores, as luzes, as cores, os incensos, um arrumado meio que desarrumado. É
todo o retrato de uma época, não sei definir, eu participei daquilo”.
Segundo ele, quase 20 mil pessoas já passaram pelo Templo do Rock
neste século. O imóvel que atualmente abriga Serguei, suas relíquias históricas
e seus seis cachorros vira-latas foi presente de um amigo gringo e é
considerado ponto turístico em Saquarema, com placas de homenagens da
prefeitura e tudo o mais. Os visitantes aparecem a qualquer hora do dia,
batendo palmas e dando gritos da calçada, querendo entrar; se o dono da casa
não responder com a receptividade de costume, é possível que esteja escondido
nos fundos, esperando para poder sair e almoçar em paz.
* * *
Mais de 50 anos antes de se tornar celebridade na pacata
Saquarema, Serguei cresceu na zona norte do Rio de Janeiro como filho único de
pais super caretas. Sérgio Augusto Bustamante
de nascimento, ganhou o apelido pelo qual é conhecido até hoje de
um amigo russo – “só botei o U pra neguinho não dizer Sergei”, conta. E em que
momento um se tornou o outro? “Eu acho que o Sérgio já nasceu Serguei”, afirma
o biógrafo João. “Já nasceu psicodélico,
já saiu da mãe dele com a corda, a roupa indiana, cantando
rock’n’roll, fazendo sinais, trejeitos e gestos”. Foi ouvindo rádio e discos
trazidos por amigos de fora do Brasil que ele descobriu o rock, isso na época
em que as gangues cariocas circulavam pelas ruas de lambreta e gel ainda era
Gumex – “eu passava no cabelo e ficava horas no espelho para fazer um topete
que nem o do Elvis, que era lindíssimo. Depois vieram os quatro rapazes de
Liverpool, que são a maior obra literário-musical do planeta em todos os
tempos, e os Rolling Stones, super punks, quebrando tudo. E vinha com eles a
figura mais psicodélica: Brian Jones, com os chapéus e as peles”, lembra hoje o
roqueiro. Segundo João, o Serguei adolescente já queria aparecer, era o mais
falante da turma e se vestia completamente diferente dos outros, que saíam para
beber enquanto ele ficava em casa costurando suas roupas.
Com Copacabana como palco e praticamente público nenhum, esse
precursor do psicodelismo no Brasil fincou suas raízes nos subterrâneos da
sociedade fluminense e logo se tornou uma das figuras mais folclóricas do então
recém-nascido movimento de contracultura nacional, dando início a uma vida de
espetáculos em busca do que considerava mais importante para o homem: a
liberdade de ser, pensar e falar. Apresentando-se em monumentos e praças públicas
com as roupas rasgadas e abraçado à bandeira dos Estados Unidos – país que ele
considera o melhor do mundo para morar – Serguei chocava com sua posição
andrógena anos antes de Ney Matogrosso surgir com os Secos e Molhados. “Hoje se
fala muito em Marylin Manson. Eu já era Marylin Manson antes de Marylin Manson
existir!”, compara, fazendo questão de lembrar que foi um dos primeiros a usar
interlace (técnica de entrelaçamento de fios para fixar perucas) no país e que
adotou de vez as flores como acessórios quando Rita Lee um dia as colocou em
seus cabelos. “Fica tão bem em você”, disse na ocasião a vocalista dos
Mutantes, grupo “altamente psicodélico”, segundo ele. “Rita Lee é a rainha do
rock no Brasil. Pode gravar até disco music, não tem problema, coração. Ela tem
um toque de Midas do rock’n’roll, onde bota o dedo vira rock”, derrete-se.
Serguei até que tentou ser uma pessoa normal. Arranjou emprego num
banco e lá pelos 20 anos de idade trabalhava como comissário de bordo, primeiro
pela Pan Air, depois pela Varig. Mas corriam os anos 50, Hollywood despontava e
a profissão era puro glamour. O então comissário Sérgio viajou o mundo fechado
num terno rígido, com o uniforme cheio de pompa; entretanto, bastava entrar no
hotel de qualquer grande cidade européia para transformar-se num ser cabeludo e
colorido, fantasiado com roupas extravagantes, e sair escondido pela porta dos
fundos para se jogar na noite. Certa vez, encontrou em Madrid a atriz italiana
Gina Lollobrigida e juntos se esbaldaram, enchendo a cara de sangria. Relatos
da noitada acabaram chegando aos ouvidos de seus superiores e o comissário foi
demitido.
No Brasil, as atitudes e o estilo de vida de Serguei obviamente
lhe renderam problemas com a ditadura militar. Ele ainda tem guardada no Templo
do Rock a primeira revista de televisão que saiu por aqui, chamada Intervalo,
onde foi publicada em 1967 uma foto sua na Avenida Rio Branco, vestindo uma
jaqueta de Mao Tse Tung e protestando descalço. “Dá pra tirar uma conclusão do
que eu sofri, censuradíssimo, e ainda levei umas borrachadas. Fui muito
perseguido, boicotaram muitos shows meus na TV e voltei para a América”, afirma
o cantor, que naquela época já vivia entre o Brasil e os Estados Unidos, onde
havia concluído o high school, alternando os dois países de meses em meses. E
foi morando com a avó materna em Long Island, Nova York, que o jovem acabou se
impressionando com os blues dos negros e caiu de amores pelo american way of
life: “Ele gosta da dignidade, dos salários, da liberdade de imprensa que tem
lá. Aqui ele viu os amigos dele sendo presos e o pessoal de cultura sendo
achincalhado, então ficou ainda mais apaixonado pelos Estados Unidos, porque lá
não tinha nada disso, as pessoas eram livres”, explica João Schiller. Além
disso, não se pode esquecer que a terra de Tio Sam foi o berço do rock’n’roll;
para Serguei, o rock tem que ser cantado em inglês e no volume máximo, sem medo
de estourar os tímpanos.
Seu biógrafo, porém, avisa que é preciso prestar atenção para não
se confundir com o personagem: “O Sérgio é extremamente culto, bem viajado, lê
muito e se preocupa em estar por dentro dos acontecimentos da política”. O
setentão gosta de contar que o Rio de Janeiro daquela época era uma pedra
preciosa, que brilhava junto com Paris, Londres e Nova York: “Tinha a magia, a
beleza e tudo. Tom Jobim em Ipanema, Vinicius de Moraes, a bossa nova, os
blocos de carnaval em que iam mais de dez mil pessoas, com a banda na frente,
pulando carnaval. E os cariocas saíam do trabalho, das filas de ônibus, as
mulheres jogavam as bolsas e saíam sambando, dançando. Aquela coisa maravilhosa
chamada Rio de Janeiro, com os morros lindos caindo atrás dos prédios”. Hoje,
contudo, seu sentimento pela terra natal é de profunda decepção. “O Brasil é um
país maravilhoso, lindo, rico, mas como nação é podre, porque não chega a
existir. Eu não sinto orgulho de nada disso aqui. O meu coração é americano,
não é brasileiro”, declara Serguei, em alto e bom som para quem quiser ouvir.
“Outro dia o Bush disse uma coisa na televisão que eu tive que levantar do chão
para aplaudir: ‘We are the United States of America. We are an organized
country and a country with laws’. E ele está certo, ele
pode, nós é que não podemos. ‘Nós somos os Estados Unidos da América. Nós somos
um país organizado e um país de leis’. Já pensou se o Brasil fosse isso?”.
No Templo do Rock, sua divisão pelos dois lares está marcada em
duas fotos, colocadas lado a lado dentro de uma moldura vermelha à esquerda,
Serguei está sentado nos degraus de algum lugar da Big Apple, no ano de 1977,
usando “sapatos iguais aos do Kiss, da mesma loja que eles compravam lá”; à
direita, aparece sorridente só de sunga na praia de Copacabana, já em 1982 –
“Um garotão passou, olhou pra mim, bateu a foto e saiu. Aí depois dei meu
endereço e ele me entregou a foto”, lembra. Talvez seus tempos de comissário de
bordo internacional tenham sido parcialmente responsáveis por alimentar a
paixão pelos Estados Unidos; a verdade é que, nas palavras de João Schiller,
“as estrelas da bandeira americana sempre brilharam mais para Serguei”.
A velocidade
encontra a emoção
A única maneira
de ter a sensação
De uma liberdade,
que há muito se foi
Nas ruas da
cidade, buscando o depois
Não posso parar,
não posso parar
Não posso parar,
de correr
Trecho da letra de “Hell’s Angels do Rio”,
do compacto lançado em 1983
Os anos em que morou nos Estados Unidos foram provavelmente os
mais felizes da vida do roqueiro carioca. Mas, ao invés de se contentar em
assistir da primeira fila ao desenrolar dos tempos de ouro do rock, Serguei
escalou o palco e viveu a história ao lado de seus maiores ídolos. Emblema da
transgressão em pessoa, ele perseguiu todos os grandes shows e concertos que
marcaram a época, como o famoso Festival de Música e Artes de Woodstock, que o
encantou em 1969. Quatro anos mais tarde, trocou figurinhas com o badalado
artista Andy Warhol na inauguração da lendária casa noturna nova-iorquina CBGB,
que pouco depois lançaria a carreira dos punks Ramones, seus vizinhos. “Chatos
pra caramba, ficavam na garagem ensaiando e minha avó dizia: ‘Essa banda de
rock é insuportável, não tocam nada, só sabem fazer barulho’. Mas eu me dava
com eles, principalmente com o cantor, o Joey Ramone. Quando cheguei no Brasil
eles começaram a ficar famosos, mas pra mim eram os meus vizinhos, não sabia que
tinham chegado até aqui”, lembra o brasileiro.
Outro contato importante realizado nos Estados Unidos foi com o
mítico grupo de motociclistas
Hell’s Angels. Sujos, descabelados e transgressores, não demorou
muito para se identificarem com a figura alucinadamente deslocada de Serguei. A
união, é claro, foi selada pelo rock: os Hell’s Angels sempre tiveram um
relacionamento estreito com Mick Jagger e os Rolling Stones, para quem diversas
vezes trabalharam como seguranças em grandes shows. Portanto, se onde havia
Hell’s Angels havia roqueiros, e onde havia roqueiros havia Hell’s Angels, não
é difícil adivinhar que Serguei também estava lá no meio. Certa vez na
Califórnia, andando na garupa de um dos motoqueiros, o carioca caiu e bateu
fortemente com a cabeça no chão, acidente que lhe rendeu um coágulo no cérebro
e seqüelas até os dias de hoje: “Tenho epilepsia motora, mas não está tão ruim,
o tique só piora quando fico nervoso”, explica. Este foi, no entanto, apenas o
início de uma grande amizade, que continuaria se fortalecendo no Brasil durante
as décadas seguintes.
Em 1968, aos 30 e poucos anos de idade, Serguei estava curtindo um
festival de rock num parque em Long Island quando encontrou seu amigo Laudir de
Oliveira, que na época tocava percussão por lá e depois viria a integrar o
psicodélico Som Imaginário, no Rio de Janeiro. Mas Laudir não estava sozinho:
trazia consigo a cantora Janis Joplin e na hora apresentou os dois, detonando o
grande Big Bang da vida de Serguei. O roqueiro se apaixonou instantaneamente pela
estrela americana e com ela teve um louco caso de amor que se transformou em
lenda, pelo menos nos anais da história do rock underground brasileiro. Difícil
dizer o que mais impressionava na visão do par bizarro: a silhueta esguia e
rebolante do tresloucado showman com a língua de fora, que a qualquer momento
poderia ricochetear pelos cantos num grito eufórico de “rock’n’roll!”, ou a
deformada figura da hippie desvairada, que aos 25 anos vivia o auge de sua
carreira musical e mergulhava de cabeça nas drogas.
Serguei viajou com Janis para a Califórnia, onde passou um mês
pulando de festa em festa, desbundando como nunca junto com seus maiores
heróis: “Conheci Jim Morrison em Los Angeles, quando ela me levou numa reunião
no apartamento dele. Fiquei o tempo todo olhando para o cara, mas ele quase não
falava, o povo ficava muito em cima e não deixava ele em paz. Kris
Kristofferson também estava lá”. Jimi Hendrix e sua guitarra psicodélica eram
outros que vira e mexe batiam na porta de Janis. Depois disso, Serguei
reencontraria
sua musa no Rio de Janeiro, em 1970, quando ela viajou para o
Brasil. Nesse verão, o jornalista Luis Carlos Maciel ainda escrevia para os
jornais O Pasquim e Última Hora, antes de se tornar editor da versão brasileira
da revista Rolling Stone: “Vi a Janis Joplin na entrevista coletiva que ela deu
para a imprensa, na piscina do Copacabana Palace. Ela já era super star, mas
aqui quem conhecia eram os fãs, quem não era ligado nem sabia quem era”.
A americana era tão anônima por aqui que chegou a ser barrada num
bar em Copacabana, como conta Maciel: “Ela chegou num bar perto da praia
loucaça, toda suja de areia, molhada
do mar, e os porteiros disseram: ‘A senhora não vai entrar nessas
condições!’. Aí Ronaldo Bôscoli foi falar com o dono e o cara não sabia quem
era, mas acabou entrando ela e o Serguei. Imagina os dois sujos de areia e
molhados... uma coisa dantesca né? O porteiro, coitado, se assustou”. As
aventuras e peripécias da dupla pelo Rio de Janeiro ficaram famosas, tanto que,
quando a edição número 81 da revista Trip desenterrou fotos de Janis fazendo
topless e enchendo a cara nas praias cariocas, Serguei foi convidado a dar seu
depoimento:
“(...) eu caminhava pela calçada em frente ao Copacabana Palace -
naquela época a gente podia andar na Avenida Atlântica sem ser assaltado -
quando vejo um casal bem diferente: um loiro alto, bonito, interessante e uma
mulher com turbante e saia cigana. Puta que pariu! ‘Janis!’, gritei, e logo nos
beijamos na boca. Nessa época, eu cantava num buraco chamado New Holliday, no
porão 73 do Leme, Copa. Cantava coisas como ‘Satisfaction’ e ‘Tropicália’,
abria o show da Darlene Glória. Quis levar a Janis lá. O gerente, um português,
barrou-a na porta: ‘Esta mendiga imunda não pode entrar aqui’. Imagine, num bar
de putas a Janis foi barrada! Briguei com o português e ela acabou entrando.
Alcione estava cantando ‘Upa neguinho’. A Janis logo sentou e pediu vodca -
sabe, quando você toma metadona dá muita vontade de beber vodca, e ela fazia
tratamento com metadona, na época, pra sair fora da heroína. Tinha uma bandinha
tocando, subi no palco e falei ‘com vocês, a maior cantora de todos os tempos’.
Pedi para os caras a acompanharem, mas eles não sacavam a música, ficaram nervosos.
Então ela soltou a voz e cantou ‘Ball and chain’. Meu Deus (Serguei emociona-se, chora)... O canto
dela era sublime! A boate toda se levantou. Alcione gritou desvairada. Tony
Tornado, que também se apresentava ali, tremia todo, sem camisa. O português se
ajoelhou aos meus pés e pediu: ‘Puta que pariu! Como fui barrar essa maluca? Dá
na minha cara, que eu mereço!’. Logo em seguida, ela cantou ‘What I’d say’, do
Ray Charles. Foi lindo, a glória, uma loucura total. A boate inteira nos
mandava bebida. Saí de lá, alcancei ela com o David Niehaus, o tal holandês
loiro, já na praia. Uma lua cheia… Você sabe, né, sou um sem-vergonha por
natureza: transamos nós três até de manhã. Na verdade, eu estava mais ligado no
holandês, aquela bunda branca ao luar, não tinha muita atração nela porque pra
mim a Janis era algo inatingível, um ídolo, sensualidade e protesto, tudo. Ela
era tudo o que eu queria ser. Mesmo que a gente estivesse próximo, transando,
pra mim ela era um ponto de luz perdido no espaço.”
Oito meses depois, a cantora foi encontrada morta num motel em Los
Angeles por causa de uma overdose de heroína. No Templo do Rock, lembranças dos
tempos com Janis estão por toda parte: fotos enquadradas, pôsteres, um par de
botas que Serguei ganhou de sua musa e até uma camiseta, que de vez em quando
ele usa em suas performances, estampada com a frase “Eu comi a Janis Joplin”.
“Comeu nada!”, garante o biógrafo João. “Comeu o holandês. Ele
brincou bastante com a Janis, na areia de Copacabana. Ela e o holandês rolavam
na praia doidaços, aí o Serguei pegava ele. Já tinha uma quedinha por homens,
mas era curiosidade na verdade”.
Vocês gostam de
Wanderléa? Nãããooo!
Vocês gostam do
Rei Roberto Carlos? Nãããooo!
Vocês gostam de
Serguei?
[Cric, cric, cric
– silêncio…]
Então eu vou
cantar as minhas alucinações!
Trecho da letra de “As Alucinações de
Serguei”, do compacto lançado em 1966
Quando apurou material para o livro Serguei, o anjo maldito, o
diretor de TV João Schiller conseguiu comprovar muitas das histórias malucas
que ouviu do roqueiro. Serguei realmente chegou a assumir o lugar de Janis
Joplin logo após a sua morte, se apresentando com sua banda algumas poucas
vezes. Em outra ocasião, encontrou com ninguém menos que Mick Jagger em plena
praia de Saquarema; o rock star estava sentado na igreja local,
anônimo, bem no meio do caminho do passeio matinal do carioca, com
quem acabou fazendo amizade. “Se tem uma coisa que o Serguei não faz é
fantasiar a vida dele. Ele fala exatamente o que é, não tem essa tendência a
aumentar nada. Então ele diz que, na verdade, não namorou a Janis Joplin. Ele
deu um beijo nela, mas estava querendo o holandês, namorado dela”, afirma o
biógrafo.
É praticamente impossível encontrar alguém que nos últimos 50 anos
tenha passado, ainda que por um breve momento, pela cena da contracultura
brasileira e não conheça o roqueiro. Como uma anomalia deslocada em seu próprio
ambiente, ele acabava sendo assimilado de uma maneira natural pelos outros e encontrava
seu caminho dentro das turmas mais improváveis, seguindo onipresente. São
muitos e variados os sentimentos que a loucura e a lisergia dessa personagem
cativante podem provocar nas pessoas, mas em um ponto todos concordam: Serguei
não faz mal a ninguém.
Certo dia, em 1975, o performer invadiu a redação da revista
Rolling Stone, no Rio de Janeiro, e deu de presente para os jornalistas um
pôster autografado. Um dos que trabalhavam lá (e o mais louco, por sinal) era
Ezequiel Neves, o “Zeca Jagger”, que há muito tempo perdeu o contato com o
amigo. “Eu acho que nem ele lembra disso”, conta hoje o aposentado, tirando de
dentro de um canudo a relíquia que ainda guarda com carinho em sua casa. Na
foto, o cabeludo psicodélico aparece sorridente e coberto por plumas; logo
abaixo, a dedicatória manuscrita a Ezequiel, “Lulu Maciel” (o editor) e
companhia: “Um beijo da rainha do pop e mãe da Tropicália. Sempre rainha,
Serguei”.
* * *
O mais incrível de tudo, no entanto, é que Serguei é careta. “Um
amigo meu, quando me conheceu, falava que eu devia tomar todas as drogas do
mundo, porque era muito louco. Achava até que eu mentia pra ele quando dizia
que não tomava nada!”, conta o desbundado.
Mesmo depois de viver entre os coloridos Sunshines que Jim
Morrison enfiava nas línguas alheias, respirar as nuvens de THC que envolviam
os hippies e se apaixonar por Janis Joplin em seu primor junkie, o setentão
jura que nunca experimentou droga alguma; apenas observava as viagens dos
outros e, quando o efeito passava, aquelas “rebordosas horrorosas”.
Para ele, os meios químicos de expansão da consciência são apenas
uma maneira de matar suas emoções e, conseqüentemente, sua vida: “Não vou
chorar, rir ou gozar quimicamente.
Eu quero rir! [e desata a gargalhar] Eu quero chorar! [e imita um
choro escandaloso] Eu quero sorrir, eu quero sentir, eu quero ver. É um absurdo
essa coisa de ficar tomando droga, tomar Viagra. A única vez em que fiquei
broxa eu tinha 18 anos e estava de caso com um garotão por quem era apaixonado.
Eu queria me matar, fiquei broxa durante um mês, mas depois voltei à ativa e
estou assim até hoje!”. Como já saiu dizendo por aí, “é graças
ao rock” que Serguei vive de pau duro.
Toda sua lisergia, portanto, seria algo que já nasceu dentro dele,
74 anos atrás. Os delírios da época que tanto ama são expressos em sua arte, em
seu comportamento, em seus requebros, em seus olhos pintados, em seus cabelos
cheios de flores. Na conclusão de João Schiller, que não viu nada além de água
mineral do outro lado da mesa durante os quatro meses de entrevistas em que se
abasteceu de chopp, Serguei foi abduzido pelo rock’n’roll como um ET: “E sendo
careta ele mesmo não entende o que aconteceu. Porque musicalmente, na verdade,
ele queria ser Dalva de Oliveira, mas como não tinha condição nenhuma de cantar
como ela, preferiu ser um astro louco com aquela voz rouca. Talvez seja até por
isso que ele não tenha sido um grande nome musicalmente, porque era careta na
época”.
De fato, a qualidade técnica da produção musical de Serguei é bem
discutível. Mas até aí, desde quando rock’n’roll se resume a isso? A verdadeira
obra de Serguei está em seu espírito, em suas atitudes, em suas transgressões,
em sua loucura, em seu visual psicodélico e, acima de tudo, em suas
performances ao vivo. Os eventuais trabalhos em estúdios resultaram em cerca de
dez compactos, lançados entre as décadas de 60 e 80, que tentam registrar um
pouco de tudo isso. O primeiro surgiu em 1966, quando foram gravadas as músicas
“As alucinações de Serguei” e “Eu não volto mais”. “Fui convidado porque
achavam que eu era muito interessante no palco, tinha muita movimentação, mas
que não era um cantor e minha carreira seria meteórica”, explica o roqueiro,
mais de 41 anos depois, ainda na ativa. “As alucinações de Serguei”, na
verdade, era uma versão de “Les hallucinations d’Édouard”, ou “As alucinações
de Eduardo”, um cantor francês muito louco que usava o cabelo na altura da
bunda e bermudas floridas.
Depois disso, o carioca desbundado passaria a aterrorizar na
televisão: ficou 45 minutos no ar em sua primeira aparição num programa de
Silvio Santos, era sempre achincalhado por Chacrinha e conquistou o título de
“Pior disco da semana” durante toda a existência do programa de Flavio
Cavalcanti. Sucesso de audiência na época, o apresentador fazia questão de ter
Serguei como convidado apenas para poder xingá-lo, quebrar seu disco e
expulsá-lo no final. Ainda na década de 60, o roqueiro escandalizou São Paulo e
o Brasil quando participou do “Quem tem medo da verdade”, de Carlos Manga, na
TV Record. O programa consistia, basicamente, num tribunal onde os convidados
eram acusados, defendidos e julgados por um júri sempre agressivo, que adorava
promover ataques pessoais. “Era eu, Roberto, Agnaldo Timóteo, foi um terror. O
grupo de balé que fazia minha defesa vinha dançando, a banda caída no chão
dando acordes de Aquarius, aí levantou tocando, e eu cantando. Foi maravilhoso,
sensacional!”, lembra Serguei, que após ser chamado de hippie sujo obviamente
acabou condenado.
Logo depois, em 1970, tentou um contrato com a gravadora CBS, cujo
produtor na época era Raul Seixas: “Ele estava conversando com umas pessoas,
veio me atender e me olhou assim, de cima a baixo. Era um cara baixinho,
branco, cheio de espinhas, cabelo cortado de soldado, muito sério, muito
compenetrado. Aí eu disse: ‘Pô, prazer, Raulzito’”. Depois de alguma conversa:
– Passa daqui uns quinze dias e vem me procurar, que eu vou ver se
produzo o disco do Serguei.
– Ainda bem que você falou meu nome, porque eu já estava
preocupado!
Quinze dias depois, a resposta: “Serguei, ele disse que não vai
gravar você não, porque você é muito louco. Não tem nada a ver, você não tem
nada, só é muito louco”. No mesmo ano, uma das faixas de seu compacto produzido
por Nelson Motta foi censurada e o cantor chegou a ser preso. Aparentemente, na
visão dos censores, o bicho estranho e nojento de “Ouriço” representava a
polícia e a música acabou virando trilha sonora de filme pornô. Em outra
ocasião, o psicodélico chegou a ser proibido de se apresentar num festival no
estádio Caio Martins, em Niterói, organizado em sua própria homenagem para
marcar a volta de uma temporada nos Estados Unidos. Mas Serguei, sempre
transgressor, não se abalava com a repressão: “Em Minas Gerais, na Universidade
Federal, os policiais também tentaram me impedir de tocar. Mas eu conversei com
eles e aí só iam me deixar fazer cinco músicas. Acabei tocando dez e eles ainda
vieram me cumprimentar depois do show, adoraram”.
Ainda na década de 70, o roqueiro estava um dia parado num ponto
de ônibus, no Rio de Janeiro, quando começou a puxar conversa com um garotão
surfista, que tinha umas tatuagens pelo corpo. “O que me atraiu foi a águia com
uma serpente que ele tinha no braço direito. Começamos a trocar idéia e aí
lembrei que era o Serguei, já tinha visto na televisão, ele era meio que um
estereótipo de Mick Jagger à brasileira”, recorda o hoje tatuador Tyes Tattoo.
A amizade acabou ficando e o rapaz se tornou ninguém menos que um
dos sócios fundadores do Hell’s Angels do Rio de Janeiro. Reforçada a relação
próxima que já tinha com os motociclistas americanos, Serguei caiu de vez nas
graças do clube e passou a ser considerado algo como seu artista oficial. Tyes,
atualmente membro do Hell’s Angels Nomads Brasil, é responsável pelo desenho de
duas rosas que até hoje marcam um dos braços do roqueiro, que também tem uma
bandeira dos Estados Unidos rasgando sua pele, feita por um outro artista da
mesma loja.
Em 1983, Serguei resolveu fazer uma homenagem aos amigos e lançou
um compacto com a música “Hell’s Angels do Rio”, acompanhado da banda Cerebelo
e com letras de Marcelo Xavier. Segundo Luiz Calanca, dono do selo musical
Baratos & Afins, este talvez tenha sido o primeiro heavy metal feito no
Brasil; na capa, um carimbo onde se lê: “Aprovado pelos Hell’s Angels”. O clube
acabou fazendo seu primeiro serviço de segurança no país nesse mesmo ano, como
lembra Tyes: “Foi no Sesc da Tijuca, tocaram Serguei, Robertinho do Recife e
outras bandas. O backstage num show dele é sempre maneiríssimo, ele é o grande
idealista do rock’n’roll, o verdadeiro entusiasta”.
E se Serguei realmente deu sua vida pelo rock, é nos palcos que
ele se entrega com toda sua paixão, de corpo e alma, numa espécie de redenção.
Seu repertório sempre contou, em grande parte, com covers de clássicos do
gênero, como “Born to be wild”, de Steppenwolf,
“Satisfaction” e
“Sympathy for the devil”, dos Rolling Stones, e “Help”, dos Beatles. Nas paredes do Templo do Rock podem ser
vistas muitas lembranças desses espetáculos, de qualquer década ou lugar; o
setentão pára e aponta para a foto de um homem durante uma apresentação
realizada em Vitória, no Espírito Santo, sabe-se lá quando:
O show histórico no Rock In Rio II
204 | psicodelia brasileira
– Serguei, quero te dar um beijo depois do show -, teria dito o
desconhecido.
– Tudo bem, mas primeiro mostra os dentes -, pediu o performer.
Sorriso Colgate estampado na cara, Serguei respondeu:
– Agora pode.
Homossexual, heterossexual, bissexual? Apesar de não gostar de
rótulos, Serguei costuma dizer que é pansexual, inclusive por serem famosas
suas histórias envolvendo árvores, samambaias e até um robalo. Isso é claro,
sem contar pelo menos metade da população viva nas décadas de 60 e 70, auge de
seu desbunde. “Eu não sou gay. Eu não sou straight. Não sou nada disso, mesmo
porque tal coisa não existe. Tudo depende do conhaque, da dose de uísque, do
cigarrinho de maconha, ou não. Depende do que rola no clima”, explica o
carioca. A verdade é que, aos olhos dele, o homem, o macho, o ser masculino em
si sempre pareceu mais bonito. Quando começou a se travestir com roupas
psicodélicas, seu visual não tinha a conotação sexual que pode ter hoje,
afinal, cabelões eram a moda da contracultura.
“Esse papo de rotular começou por causa do nome dele. O triste é
que, na época, não era preciso explicar”, afirma João Schiller. “Aí foi criada
a expressão gay, então Serguei passou a ser viado. Começaram a questionar e,
como ele é transgressor de regras, acho que tomou isso como ‘Ah, quer saber,
sou mesmo, e aí?’. É bem a cara dele, transgressão, rock’n’roll. Ser viado é
rock’n’roll!”.
One of these mornings
You’re gonna rise, rise up singing,
You’re gonna spread your wings,
Child, and take, take to the sky,
Lord, the sky
Trecho da letra de “Summertime”, de George
Gershwin (1935), imortalizada na voz de Janis Joplin
“Serguei: finalmente o show de sua vida”. Este era o título de um
artigo sobre a segunda edição do festival Rock in Rio, publicado no Jornal do
Brasil de 24 de janeiro de 1991.
O texto começava da seguinte maneira: “Vocês não têm idéia da
importância do dia de hoje para Serguei, que vai cantar logo após a
apresentação da Orquestra Sinfônica Brasileira”. Sim, depois de passar mais de
duas décadas jogado no limbo da cena musical nacional, o veterano psicodélico
finalmente alcançou o reconhecimento que tanto buscava, aos 57 anos de idade.
“Eu ficava puto porque idolatravam uma porrada de gente e queriam deixar ele de
fora. Ele, a lenda viva do rock! Ele foi o pioneiro, o verdadeiro guerreiro do rock,
viveu isso na época em que todo mundo recriminava”, conta o amigo Tyes,
indignado. “O Serguei sempre acreditou no sonho dele, e ainda por cima tem um
carisma do caralho. Foi um puta respeito por parte dos organizadores convidarem
ele para o Rock in Rio II”.
Naquela noite de quinta-feira, em pleno estádio do Maracanã,
Serguei fez mais de 50 mil pessoas sentarem no gramado para ouvi-lo cantar
“Summertime”, segundo a versão blues rock de Janis Joplin. “Eu pedi, sentaram a
bunda no chão, desci sozinho e cantei no meio de todos. Foi bonito pra caramba,
um show inesquecível para mim”, lembra o super star. Sucesso entre o público e
elogiadíssima pela crítica, a surpreendente apresentação lhe rendeu um convite
para gravar o primeiro e único LP de sua carreira, que nunca chegaria a ser
lançado em CD. Além dos covers de sempre, foram incluídas no álbum algumas
músicas originais, com destaque para “Rolava Bethânia”, uma paródia de “Roll
Over Beethoven”, de Chuck Berry. A homenagem a Janis, aliás, é uma das marcas registradas
de suas performances ao vivo: “O show está no maior clima de rock e, de
repente, ele pede pra galera sentar e ficar tranqüila. É uma vibe muito boa, o
público entra numa viagem, fica meio dormindo, meio acordado”, descreve o
Hell’s Angel Tyes.
Desde então, o roqueiro nunca mais gravou em estúdio. Em 2002, no
entanto, a Baratos & Afins resolveu assumir a responsabilidade de preservar
decentemente seu legado e reuniu
treze de suas mais alucinógenas criações na coletânea Serguei;
segundo Calanca, a preocupação na hora de selecionar as músicas foi a de
incluir “só as coisas rockers”. O jornalista e produtor musical Fernando Rosa,
conhecido na blogosfera como Senhor F, avaliou que a compilação dá, “pela
primeira vez, a real dimensão da importância da obra de Serguei. Além do
‘folclore’ em torno de sua figura, a seleção musical de Calanca mostra um
repertório de clássicos da psicodelia nacional, com instrumental típico (com
muita fuzz-guitar) e letras doidonas”.
“Serguei se compara
a um ponto luminoso qualquer perdido no tempo e no espaço, sem saber direito de
onde ou para o que veio”
Luiz Calanca, dono do selo musical Baratos
& Afins
Quando passam a apagar setenta e tantas velinhas a cada bolo de
aniversário, pessoas normais costumam estar aposentadas, mimando netos,
gastando a herança dos filhos, tomando cuidado para não cair no banheiro, ou
apenas aguardando melancolicamente a hora de bater as botas. Mas Serguei não é
uma pessoa normal. Aos 74 anos de idade, o carioca continua tão duro e inocente
como aos dezoito: “Eu vivo de atitude, de rock’n’roll e dos meus shows”. Em
2007, participou do programa da mãe do filho de Mick Jagger, Luciana Gimenez, e
fez duas aparições no Programa do Jô, onde já é da casa, sendo uma ao lado da veterana
banda Made in Brazil e outra com Xandra Joplin, cover de Janis. Sua última
grande apresentação, no entanto, foi durante a terceira edição da Virada
Cultural, que agitou o centro de São Paulo no começo de maio.
“Nós temos uma surpresa pra vocês: uma lenda viva do rock, o
divino, Serguei!”, anunciaram
no palco da Barão de Itapetininga. Ao som dos primeiros acordes de
“Rolava Bethânia”, o setentão psicodélico entrou em cena de jeans e camiseta
rasgados e começou a pular sem parar, rebolando loucamente entre caras, bocas e
poses, com a voz rouca tentando encontrar fôlego em algum momento. A guitarra
do trio paulista The Rose Blues Band parou
de funcionar por um instante, mas o público nem percebeu, de tão
impressionado com a performance surreal que estava acontecendo diante de seus
olhos. E mesmo com cada centímetro da rua lotado por homens, mulheres,
crianças, idosos e Hell’s Angels, o roqueiro ainda encontrou espaço para pular
do palco e cantar no meio de todos.
Luiz Calanca estava lá: “Ele falou ‘Eu vou aí!’, pediu pras
pessoas sentarem e desceu. Eu estava bem no gargalo e ele pediu um viva pra
Baratos & Afins, fiquei emocionado”. Em pé entre a multidão sentada à sua
volta, Serguei cantou “Love of my life”, do Queen, acompanhado apenas pelo som
da guitarra e pelas vozes da platéia. Ao final do espetáculo, histeria, e todos
correram em direção à grade para tentar tocar no rock star. “Ele não tem banda
fixa, então é tudo sem ensaio. Aquele show foi uma das coisas mais bacanas da
Virada”, afirma Calanca.
Quando sobe no palco, Serguei parece capaz de sair dando um duplo
mortal twist carpado em parafuso e ainda levantar vôo no final, tamanha é sua
energia. “Ele dá cada salto que parece que vai desmontar em dez e, se toma
alguma coisa, é remédio pra pressão”, comenta João Schiller. “É estranha a
disposição que ele tem nessa idade; talvez essa seja uma das provas de que ele
não use qualquer tipo de droga, como se pressupõe que ele tenha usado a vida
inteira”. Na realidade, é provável que esse eterno vigor juvenil do roqueiro se
deva de fato a seu espírito, que definitivamente não acompanhou sua evolução
biológica desde o longínquo ano de 1933. Afinal, está muito claro que hoje
Serguei vive a idade de sua mente, e não a de seu corpinho; vaidoso, além de
tudo, ele gosta de mostrar que não tem rugas, pelancas ou manchas senis, e de
quebra ainda pergunta: “Você não me acha sexy?”.
“Ele continua o mesmo garoto transviado e psicodélico, usando as
roupas que quer usar, falando o que quer falar, coçando o pé no sofá do Jô
Soares”, diz o biógrafo João. Respirando
a lisergia de tempos passados, o desbundado vive numa casa como o
Templo do Rock porque este é seu habitat natural. Fora dele, é encarado como um
ser estranho saído de
uma outra dimensão, de um universo paralelo. Já a seus olhos, foi
o mundo que perdeu o brilho e o glamour. Enquanto a maioria das pessoas de sua
idade se recolhe em asilos, Serguei está na rua fazendo rock’n’roll, vivendo
seu sonho eternamente. Nunca o veremos tirar a maquiagem, cortar o cabelo,
colocar uma gravata, usar sapato e sair por aí de mãos dadas com alguma senhora
de respeito: “Diriam ‘Olha, ele tomou jeito’. Tomei o seu jeito, não o meu. Eu
prefiro estar rasgado, descabelado, sair e dar um beijo na boca do irmão da
minha garota!”. Em sua velhice Serguei está mais vivo do que nunca, sempre
rainha, forever young. A viagem não tem fim. Embora muitas bandas estejam
extintas, permanecem os sons, as músicas e, em muitos casos, os cabelos compridos.
Da época em que embarcaram, pouco sobrou. Documentos, fotos e registros
perderam-se no tempo. A memória falha. O rosto é coberto por rugas, o corpo já
não é tão magricela. Comparados às raras fotografias, os olhos são levemente
caídos – mas conservam o mesmo brilho e o olhar atrevido. Quem se deixa
conectar ao universo – pelas artes, pela música ou por outros caminhos – nunca
volta igual.
Os registros musicais daquelas viagens estão por aí até hoje,
ainda que raros e caros. A democracia virtual permite que todo o universo
daquela época seja explorado por quem nem pensava em nascer em meados de 70, e
por quem está nascendo agora. Embora a psicodelia esteja ligada a um contexto
musical, artístico e político, ela pode ser criada e recriada em um ciclo infinito.
Esta é uma história que não tem fim.
“Eu fiz pior
(...)
parei de tomar
droga e fui fazer retiro..
Eu fiz pior
Saltei como no
circo cada armadilha
Muito pior
É só por isso que
meu nome ainda brilha”.
“Eu fiz pior”, Lula Côrtes, do disco A Vida
Não é Sopa, de 1998
Em 1996, o estado de Alagoas estremeceu quando surgiu, como um
relâmpago amolegado, o Mopho. Fundado em Arapiraca, cidade do interior famosa
por sua produção de fumo legal
e ilegal, pelos colegas João Paulo e Júnior Bocão, a formação
esteve completa com o baterista Hélio Pisca e o tecladista Leonardo, já em
Maceió. Totalmente influenciados pela fase mais louca da carreira de Beatles e
afins, os garotos esqueceram que a moda do momento era o manguebeat e entraram
de cabeça no universo psicodélico. Mergulharam fundo em cogumelo – na época de
safra – e num bom fuminho, e criaram hits que, para um ouvido inocente, remetem
aos confins da década de 70.
“Naturalmente a experiência musical vinha sempre acompanhada de
alguns aditivos”, conta o ex-baixista da banda, Bocão. “Algumas pessoas nos
rotulavam de psicodélicos por causa do visual da banda no palco, pelo som
viajado, pelo fato de sempre ter havido nuvens de fumaça por onde andássemos.
Para muita gente estávamos vivendo o auge dos anos 60 em plena década de 90. Eu
estou começando a acreditar que éramos loucos ou ainda somos”, diz.
Mopho
A neo-psicodelia alagoana não constrangeu – pelo contrário, a
explosão fora-de-época arrastou multidões, até que uma briga entre Hélio Pisca
e João Paulo, que saíram na porrada no meio de um show, acabou com o
rock´n´roll. “O fato de sermos uma banda com uma proposta tão diferente na
época nos atrapalhou mais que favoreceu. A banda tem este nome por causa disto,
enquanto todo mundo falava em manguebeat nós tocávamos um som mofado”, explica
Bocão. Ele e Pisca moram hoje em São Paulo, em um apartamento simples e antigo.
Os dois mantêm outra banda, Casa Flutuante, que não nega suas raízes
setentistas – o disco A Terra é Nossa Casa Flutuante foi produzido pelo mutante
Sérgio Dias. Em 2005, João Paulo admitiu outros músicos e, além de animar
festanças e bailes em Maceió, promove freqüentes shows lotados com o Mopho em
nova formação. O público continua cantando em coro, alucinado e se jogando no chão
– como se os anos que separam o século XXI da sonoridade original não tivessem
passado.
“Uma leitura
mineral incrível
Ratos são
cristais nessa prateleira
Da secura na boca
um diamante
De repente você
Num quarto escuro
Peixes
hidráulicos e som
Na rua nua
A nossa paranóia
Uma leitura
mineral incrível
Tire os sapatos e
a sua máscara
Enquanto o mundo
gira
Relaxe a sua
mente”
(“Uma leitura mineral incrível”, Mopho, primeira demo, de 1996)
Marsicano
“Na verdade, o psicodelismo dos anos 60 foi espargindo um pólen
que frutificou com mais força no século XXI. Embora muitos continuem a
considerá-lo incômodo e torçam para enterrá-lo, o psicodelismo se impõe cada
vez mais nas novas gerações”, define Alberto Marsicano, citarista discípulo de
Ravi Shankar, que anima multidões ao som de rock´n´roll indiano ou trance.
Marsicano diz que seu pai era professor catedrático de medicina na Universidade
de São Paulo e diretor do Serviço de Toxicologia do Instituto Médico Legal. O
que isso significa? “Ele tinha a sua disposição caixas e caixas de LSD puro”,
conta o músico, afirmando que aos 13 anos, época em que “empunhava uma guitarra
Gibson”, tomou uma ampola de “LSD 25 puro do laboratório Sandoz”. “Jamais
retornei dessa viagem”, conta, sem o menor arrependimento. Marsicano já tocou
com Arnaldo Baptista, Lobão e Lula Côrtes – este último, considerado por ele “o
verdadeiro mentor de Chico Science”. O artista orgulha-se de ter introduzido a
cítara clássica indiana no Brasil e, nos últimos anos, permanece embrenhado no
universo psicodélico – desta vez, no trance das raves e festivais.
“Eu nada posso
prometer
Eu só tenho uma
garrafa e um doce no meu bolso
Mas, sei que você
também quer
Entrar numas de
se desligar
O amor é feito de
plástico
Não tenho medo
Já cruzei a linha
de chegada, oh darling
Saiba que é no
fim onde tudo começa”
(“O amor é feito de plástico”, Mopho, do
disco Sine Diabolo Nullus Deus, de 2004 )
Fato é que a psicodelia não tem época. A sonoridade e as
referências podem remeter a certo momento – mas datadas, elas não são. O
carioca Rogério Tolomei Teixeira, o Rogério Skylab, diz que seus discos foram,
gradualmente, “abrindo as fronteiras da percepção”.
Rogério Skylab
Classificado por especialistas como “Art Rocker”, costuma flertar
com a música eletrônica, mas bebe da mesma fonte psicodélica que brotou pela
primeira vez nos anos 60. Declaradamente influenciado por Frank Zappa, Arrigo
Barnabé, Syd Barret e o maluco hippie Daminhão Experiença, Skylab acha que a
recepção que as platéias têm de seu trabalho “não deve ser diferente da reação
que os primeiros psicodelistas tiveram que enfrentar”. O artista ainda critica
os olhares voltados ao passado. “Em razão de um anacronismo histórico, você
encontra alguns jornalistas valorizando Ronnie Von, Mutantes, Som Imaginário,
Vímana, mesmo sabendo no que vieram a dar, e esquecem quem atualiza hoje o
movimento”, diz. Justiça seja feita: se as portas foram abertas pela geração
setentista, ainda há um universo gigantesco a ser explorado pela nova prole
embrenhada no psicodelismo.
O rock, o funk, o
samba,
Tudo no meio do
caos,
O acaso e o lance
de dados,
A natureza te
chama.
“A Natureza”, Rogério Skylab, do disco
Skylab V, de 2003
Hoje, os ares são de democracia, os tempos são libertários, o
sistema já não é tão descaradamente repressivo. Que sentido há, então, na
contracultura? “Há 35 anos, até cabelo comprido era subversivo, uma ameaça. As
bandas hoje não estão contra, que sentido haveria nisso?”, questiona Fábio
Golfetti, vocalista da banda Violeta de Outono, formada em 1984 e fortemente
influenciada pela estética e os sons setentistas. Fábio considera sua banda
psicodélica: “Quem estava a fim de ‘viajar’ para lugares estranhos, distantes,
interiores, surrealistas, se identificava com nosso som”. Em 1975, aos 15 anos
de idade, Fábio teve sorte e conseguiu pegar o finalzinho do Som Imaginário e
dos Mutantes. Como uma cápsula do tempo, diz que compõe inspirando-se em seus
mestres musicais, em imagens, visualizações, mandalas, poesia oriental e
histórias em quadrinhos.
A grande questão da psicodelia, brasileira ou estrangeira, é sua
atemporalidade. “É a musica das esferas, do universo, sem conexões nem pré-concepções,
mas também sem a pretensão de ser definitiva”, filosofa o músico e produtor
Apollo Nove. Francisco Nogueira de Carvalho na certidão de nascimento, ele não
esconde sua admiração pela sonoridade das décadas de 60 e 70. Quando perguntado
se seu som é psicodélico, responde enfático: sim. E continua divagando sobre o
tema: “Música é essa arte que permite momentos de grande viagem interior, com
os olhos fechados, tão sua como respirar, e marca a sua vida por isso, porque
não dá pra contar pra ninguém, não dá pra transformar em palavras. É essa coisa
abstrata, sem moldura, é essa fixação na memória, como a lembrança olfativa ou
da sensação de amor que a faz a mais infinita e transcendental das artes. Não
sei se eu com a minha música, mas esse é o meu objetivo!”.
Violeta de Outono
Apollo Nove não se enquadra no neo-psicodelismo que assume os
mesmos moldes do ritmo original. Ele é da turma dos espiritualmente
psicodélicos, admiradores dos conceitos e distorções que aproveitam para criar
algo diferente e, apesar de não lembrarem em nada os bolachões de 70, mesmo
assim podem ser considerados lisérgicos.
“Senti meu corpo
derretendo, flutuou
minha mente
compreendendo
falei com minha
sombra, tem vida própria sim
abrindo as tortas
e as cucas
Gentilmente
sentei na pedra, tornei-me parte desta pedra
ninguém me
compreendia, nem nada que eu fazia
os passarinhos me
acalmaram!!!!
Uhh aaaaahhh
Uhh aaaaahhh
Uhhhhhh
Uhhhhhh
abrindo as tortas
e as cucas
Foi quando então
eu percebi
eu tava no meu
guarda-roupa
em posição fetal,
achando tão normal, rolando um
flash Back
maternal
Uhh aaaaahhh
Uhh aaaaahhh
Uhhhhhh
Uhhhhhh
abrindo as tortas
e as cucas”
(“As tortas e as cucas”, Júpiter Maçã, do
disco A sétima efervescência, de 1996)
O gaúcho Flávio Basso já foi Júpiter Maçã e Woody Apple.
Atualmente demora, mas responde pela fusão Júpiter Apple. Membro da geração de
1980 do rock gaúcho, começou tocando nas bandas TNT e Cascavellettes. Sozinho,
embarcou fundo na psicodelia sem medo do desconhecido, nem de parecer
anacrônico. Seu álbum A Sétima Efervescência já foi considerado o melhor da
história do rock gaúcho – e Júpiter não parece se importar muito com isso,
embora cite o próprio trabalho ao ser questionado sobre que disco psicodélico
brasileiro admira. “Eu não estava brincando de psicodelia por influência de
outras bandas, eu estava realmente vivendo uma fase lisérgica, mas não sou mais
assim, é um dia depois do outro e o mundo continua girando”, define.
Para ele, música psicodélica é a “expansão das barreiras
imaginárias, consciência e inconsciência através da música e poemas”. Em plena
atividade depois de passar pela bossa nova e pela música eletrônica, Júpiter
afirma que hoje voltou ao rock’n’roll. Em 2006, dividiu com Novos Baianos,
Arnaldo Baptista, Rita Lee, Tom Zé, Flu, Matheus Valter e Mopho a trilha sonora
do longa Wood & Stock, animação sobre os antológicos hippies de Angeli.
Melhor dizendo, suas músicas representam tão bem o espírito do filme que ocupam
quase metade da coletânea.
“O timbre do
Caetano é super bacana
Não pense que eu
estou copiando, que eu sou banana
Peguei emprestado
pras artes da semana
Abrindo as portas
da percepção
Um tal de Aldous
Huxley de cara ficou doidão
Tomando toda a
solução.
Doidão é apelido
para a paranóia
Toda jibóia, toda
bóia, toda clarabóia
Querida, que tal
baixar o televisor?
Deitado no divã
com Woody Allen
Eu tive um sonho
com aquele estranho, velho alien
Que era cabeça
Bob Dylan, barba Ginsberg, Allen”
(“A marchinha psicótica do Dr. Soup”,
Júpiter Maçã, Wood & Stock, de 2006)
* * *
Em 2001, alguns garotos curitibanos na faixa dos 20 anos, ligados
nos mesmos sons que seus pais ouviam quando jovens, resolveram organizar um
festival. Como a sonoridade setentista não encontrava muito espaço para
proliferar na cena de rock paranaense, a solução foi alugar um sítio – um pouco
longe, em Angra dos Reis – e levar a turma toda para lá. O Angrastock marcou o
início de um festival que acontece anualmente desde então, mas com outro nome:
Psicodália.
Os idealizadores desse movimento afirmam procurar “uma nova era na
música, na arte em geral e na sociedade. Buscamos nos eventos realizados pelo
movimento abrir espaço para uma arte livre, com qualidade e ideologia, buscando
unir essa luta a modelos de vida que acreditamos serem vitais para a
humanização das relações entre pessoas. Pacifismo, respeito, diversão, alegria,
consciência ambiental e ecológica, liberdade de expressão e de ‘ser’ fazem
parte dessa empreitada por um mundo melhor”.
O Psicodália já conseguiu angariar um número considerável de
seguidores, diferentes dos neo-hippies que freqüentam festivais de música
eletrônica. O negócio ali é o rock’n’roll, e o rock psicodélico mesmo, que
completa o clima retrô da proposta do festival. Alexandre Osiecki nasceu em
1980, filho de um beatlemaníaco, e organiza o Psicodália desde 2001. Ele,
entretanto, refuta o conceito de passado: “A nossa idéia é dar uma
continuidade”, define, explicando que a ideologia passa de pai para filho, de
geração para geração. “Tem muitos grupos que estão tentando fazer algumas
coisas pela natureza, pela arte, buscando ajudar a sociedade, com essa idéia de
tentar construir uma coisa melhor. Não é um resgate”, filosofa. Alexandre toca
numa banda, tem cabelo comprido, vende artesanato e dirige uma Kombi modelo
1960 pintada a caráter. Anacrônico? Talvez seja apenas mais um que embarcou
nessa viagem sem fim.
AgrAdecimEntos
Esse trabalho só foi possível porque muita gente boa doou tempo,
conhecimento e suor para nos ajudar. Nossos felizes e sinceros agradecimentos
para... Nelson Motta, Luiz Carlos Maciel, Ezequiel Neves, Fernando Rosa,
Welington Andrade, Luiz Calanca, Amarílis Gibeli, Jaques Kaleidoscópio, Piky,
Alexandre Matias, Rodrigo Carneiro, Clemente, Adriana Amaral, Vinicius Camargo,
Ronnie Von, Arnaldo Saccomani, Maurício Guedes, Flávia Durante, Fábio Peraçoli,
José Teles, S. Quimas, Rodrigo Araújo, Natália Mestre, Saulo, Bruno Firmino,
Rogério Ratner, Wagner Notaro, Zé Guilherme, Marcito, João Schiller, Tiez
Tattoo, Jorge Mautner, Faby, Daniela - Agência Produtora, Luiz Simas, Daniel
Romani, Eduardo Leal, Candinho, Serguei, Fredera, Milton Nascimento, Zé Rodrix,
Tavito, Wagner Tiso, Fernado Gama, Ritchie, Lobão, Luiz Caetano, Sérgio Regly,
Laílson, Robertinho Silva, Zé da Flauta, Marco Polo, Lula Côrtes, Almir de
Oliveira, Mimi Lessa, Marcos Lessa, Edinho Espíndola, Massari, Fábio Golfetti,
Pedro Alexandre Sanches, Okky de Souza, Luis Mauro, Rogério Ratner, Apollo
Nove, Paulo Rafael, Júnior Bocão, Hélio Pisca, Júpiter Apple, Marsicano,
Alexandre Osiecki, Skylab, Thiago Silvestrini, farmacêuticos responsáveis pela
Valeriana e pelos florais, que tentaram nos deixar no eixo, garçons dos
arredores da Paulista 900 que ouviram nossas mágoas... aos nossos amigos,
colegas, chefes, terapeutas, pais e namorados, a Deus, Santo Expedito, Jah,
Shiva e Buda.
Quem quiser conferir os bastidores da apuração deste livro, acesse
o blog
http://psicodeliabrasileira.wordpress.com
224 | psicodelia brasileira
Bibliografia
BAHIANA, Ana Maria. Almanaque Anos 70. São Paulo: Ediouro, 2006.
BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes: MPB anos 70: 30 anos
depois. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2006.
BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa. Asdrubal trouxe o trombone: Memórias
de uma trupe solitária de comediantes que abalou os anos 70. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2004.
CALADO, Carlos. A divina comédia dos mutantes. São Paulo: Ed. 34,
1995.
DEL RIOS, Jefferson. Bananas ao vento: meia década de cultura e
política em São Paulo. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2006.
DIAS, Lucy. Anos 70: Enquanto corria a barca. São Paulo: Ed. Senac
São Paulo, 2003.
FERREIRA, Glória. Escritos de Artistas: Anos 60/70. Rio de Janeiro:
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GABEIRA, Fernado. O que é isso, companheiro. Rio de Janeiro:
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MACIEL, Luiz Carlos. Geração em transe. Rio de Janeiro: Nova
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MACIEL, Luiz Carlos. De volta para o futuro. Rio de Janeiro: Book
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MOON CHEVALIER, Scarlett. Areias escaldantes: inventários de uma
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MOTTA, Nelson. Noites tropicais. Rio de Janeiro: Editora Objetiva,
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TELES, José. Do frevo ao manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2000.
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- acessado em 30 de abril de 2007 às 10h23
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0205200714.htm&COD_PRODUTO=7
– acessado em 9 de maio de 2007, às 23h47
http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2007/04/23/295475260.asp -
acessado em 6 de junho de 2007, às 12h45
http://odia.terra.com.br/cultura/htm/geral_93920.asp - acessado em
25 de maio de 2007, às 15h33
http://www.brnuggets.blogspot.com - acessado pela primeira vez em
12 de março de 2006, às 16h, e inúmeras vezes ao longos dos anos de 2006 e 2007
http://www.spectrum.mus.br – acessado em 13 de outubro de 2007, às
11h30
http://tramavirtual.uol.com.br/artista.jsp?id=20107 – acessado em
02 de novembro de 2007, às 14h50
http://www.baratosafins.com.br – acessado pela primeira vez em 11
de novembro de 2006, e outras vezes ao longo de 2007
P ARA OUVIR
1. Meu novo cantar (Ronnie Von)
2. Olhai os lírios do campo (Liverpool)
3. Já brilhou (Bixo da Seda)
4. Não fale com paredes (Módulo 1000)
5. Espelho (Módulo 1000)
6. Morse (Som Imaginário)
7. Make believe
watz (Som Imaginário)
8. Quiabo’s (Spectrum)
9. Geórgia, a carniceira (Ave Sangria)
10. Momento na praça (Ave Sangria)
11. Trilha de Sumé (Lula Côrtes e Zé Ramalho)
12. Balada da calma (Lula Côrtes)
13. On the rocks
(Vímana)
14. Masquerade
(Vímana)
15. Eu sou psicodélico (Serguei)
16. Vamos curtir um barato (Mopho)
17. None-Cherry Blossom (Marsicano)
18. Euficonervoso (Rogério Skylab)
19. Inexplicata (Apollo Nove)
20. A marchinha psicótica de Dr. Soup (Júpiter Maçã)
21. Faces (Violeta de Outono)
Edição digital: Cristiano Jerônimo
www.cristianojerônimo.blogspot.com
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