terça-feira, 24 de maio de 2022

Máquinas de homens


Eu também tenho seus medos

Também não guardo segredos

Escrevo para me libertar e leio

Leio para ser aprovado na vida

Esta escola que nos é oferecida

Vai nos dar todas as alternativas

Até o sonho de não sermos nada

Que amansa quando vê lambança

O colonizador dentro do colonizado

O oprimido querendo o outro lado

É difícil se perceber sujeito de si

Peça do xadrez social e crenças

A face da independência parada

Passou a aprisionar ao consumo

Sem se importar com qual o rumo

Dinheiro, bala, pólvora e valentia

Acontecem à noite, morrem de dia

São homens que comem homens

Máquinas com vozes de máquina

Voraz apetite que não se acaba...

 

 

(Cristiano Jerônimo – 24052022)

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Ilustrações em monotipia criadas pelo multiartista Lula Côrtes para dez poemas do livro Ribeira de Mar dos Arrecifes, do jornalista e escritor pernambucano Cristiano Jerônimo



recife de rua

 

vagueia um menino qualquer

qualquer rua...

matuta qualquer menino

vidrado na lua...

 

sobre a cidade

de água indecisa,

sob a verdade

crua e concisa

repousam as asas

da contradição:

do que é da terra de Deus

e que é de um mundo de cão.

 

Um rebanho de bichos do mato

                               ...meninos...

                               ...cidade...mata...

                               ...MENINOS...

 

 

a lama enrustida

 

atravessar o rio da vida

e a história da vida molhar;

pular de uma ponte comprida

e na lama da vida nadar...

 

compreender a lama o centro

e no centro da roda rodar;

desvirginar o segredo do tempo

e no vento da vida voar...

 

mergulhar no canal de entrada

no bueiro da esquina entrar

e ao sair, na bacia do pina,

pelo dique afora andar...

 

de um forte, o progresso

(ao forte das cinco pontas

e ao cais josé estelita)

 

                havia um forte

                há mais de cem anos atrás

onde um rio e o mar

formavam o cais.

- arrecifes de formas

concretas

                não morrem, jamais.

                Mas ali onde havia um

mangue,

                hoje são plataformas gerais;

                e o câncer urbano

                propaga-se...

                ...cada vez muito mais.

                assim, bosques indecisos

                vagueiam sobre um passado

esquecido

                enquanto a forma arquitetônica

de outrora é substituída pelo caos,

o que agora os homens

chamam indecentemente de progresso.

 

 

olhem agora

a contracapa do recife,

aquilo que escondem de ti

sob o arregalo dos teus olhos

assustados com os curumins do “mau”

saídos dos esgotos marisíacos de sal...



suicídio ao cais


surgia o coletivo

e ele descia.

meio claro chuva,

meio dia.

Absorto entendia

que dobrava uma esquina fria,

até a ponte que subia

a guararapes...

o jornal de ontem,

lia o diário, que esquecia

e atordoado ele seguia...

ele chorava, ele sorria.

cinco minutos

em cada praça

se despedia...

na 1º de março

sem companhia...

prosseguia, ainda,

a marquês de Olinda,

e, jogando-se do cais,

no mar ele morria...

(quantas coisas

o marco zero não presencia...)

 

dos mangues

 

eu sou da terra dos mangues,

dos sangues que cobrem nossos contraditórios asfaltos...

dos grupos que exalam o maracatu lá dos altos.

 

eu sou do lado urbano,

das retas e contornos dos prédios

que presenciam ou acabam o tédio

da arquitetura da cara do povo.

 

eu sou do lado rural,

das árvores seculares e florestas vivas,

das cerâmicas da várzea de francisco brennand.

 



menina de cais

 

uma mariposa

de cais,

gás...

aquática

cinemática.

movimentadamente

estática...

uma menina

que vagueia

o cais de zé

mariano, apolo

e santa rita.

presa ao cais

da alfândega

com seios contrabandos,

seu bando:

que bando?

uma prostitutinha

de cabelos de mangue,

uma menina de rua

é a nossa beleza;

brasileira Veneza...

 

 


recife: a tua carne

 

a tua carne é irrigada

pelos canais e rios de lama

além dos arbustos que encobrem

os sóis que refletem a gente.

 

o teu horizonte incerto é curvo

nas retas esquisitas da tua ilha do leite,

a tua ilha do retiro, joana bezerra,

um tiro nos coelhos

tuas ilhas...armadilhas...

são tuas veias dividindo teu tecido,

tua pele de lama, em tua cama me deito.

 

teu horizonte correto é reto

tanto quanto também incerto

e tuas águas, inevitavelmente, correm para o mar

nos corrupios esguios das mágoas que não vamos chorar.

 

teus pássaros turvos

os uivos noturnos

boêmios diurnos

mistérios que me fazem encontrar...

 

atlântida nem Veneza,

recife beleza,

paraíso infernal.

até o galo sai antes da aurora

na hora do carnaval...

 

 


Pontes

 

pontes, por onde andas?

sei que durante tantos anos

não permanecestes parada...

 

ponte, por onde falas?

sei que, apesar de muda,

não te resumes calada...

 

ponte, por onde nadas?

porque, apesar de morar neste rio,

nunca morrestes afogada...

 

ponte, por onde começas?

ponte, por onde terminas?

eu só sei dos ensinamentos

que tua travessia me ensina.

 

 

satisfação

(a antiga rio branco)

 

que pressa e risos

de um lado a outro das ruas,

das meninas vestidas

que, na verdade, são nuas.

elas vendem beijos e abraços,

pedaços de noite sem emoção.

anseiam, ao passo que abominam

o cansaço das noites condenadas

à prostituição...

talvez sim, talvez não

alguém possa satisfazer mecânica sua falta

e a sua determinação de se vender infeliz,

numa vibe de que qualquer trocado torna alguém mais feliz...

...

E ela diz: - levando comigo, freguês, seus segredos e ilusões,

Das quais tua alquimia solitária

Não te traz satisfação,

Levo tanto a maçã quanto o pão!


Texto: Cristiano Jerônimo

Ilustrações: Lula Côrtes

Lei de Amra


Quantos anos se passaram

Não se passou nem um ano

Os embarques atrasaram

Desembarcaram no oceano

Nas fístulas que ficaram

Vazaram do voo o plano

Feixes fatiados dos fatos

Realidade outra ao lado

Os passarinhos voaram

As coisas se transformaram.

 

Um bico de lacre viciado em jabuticaba

Um outro pássaro com as asas nas mãos

Não ligam juntar, porque tudo acaba;

Voa até quando parece estar no chão.

 

Quando os anos vieram e voltaram

Muita gente não estava mais lá

Nem a geologia fora conservada

E viram a Lei de Amra compensar

Devolver tudo em justas reações

Amargar consciência no coração

Ou andar no mais bonito pomar

De uma floresta com muita água

Onde decidiram tudo derrubar.

 

 

 

(Cristiano Jerônimo – 23.05.2022)

Algum paradoxo

Só sonha quem tem fé Só chega quando anda Olhar só da varanda Não gasta a sola do pé Ser sempre muito forte Não contar com a sor...