domingo, 22 de junho de 2025

Cristiano e Lula Côrtes: poesia plástica

Lula Côrtes e Cristiano

Jerônimo pintando a poesia

Cristiano Jerônimo é poeta, compositor e jornalista

 

No aniversário de cinco anos do Flores no Ar, no dia 26 de setembro de 2014, recebemos um lindo presente do jornalista e artista Cristiano Jerônimo. Ele disponibilizou para publicação no nosso site a obra ‘Ribeira de Mar dos Arrecifes’, uma série de poemas criados por ele e ilustrados pelo grande Lula Côrtes. Confiram abaixo como aconteceu a criação da obra e, em seguida, deliciem-se com os poemas e ilustrações!

 

 

Poesia e pintura: Recife em pesquisa e ritmo

| Por Cristiano Jerônimo |

‘Ribeira de Mar dos Arrecifes’ é um livro lançado em 1994, escrito entre 1992 e 1993, sob influência da Soparia do Pina, por se tratar de um livro temático, com recorrência às referências das mais variadas nuances da capital pernambucana. Vim do sertão morar na capital aos seis anos de idade. Naqueles tempos, início da década de 1980, parece que as coisas eram bem mais complicadas do que hoje, do ponto de vista socioeconômico, ambiental e de desigualdades mais visíveis, tipo os “dormidores” da rua do Sol, próximo à Rua Nova, por ali pela Ponte de Ferro. O centro do Recife, felizmente, foi ficando menos deprimente pela consciência popular que conheceu mais os nossos direitos e firmaram forma questão de exercê-los. Nas ruas, nas barricadas, para exigir um pouco de respeito e os mínimos direitos, como à vida.

Escrever um livro sobre a minha impressão poética das disparidades, do belo e do feio, de uma cidade muito importante, o Recife, foi uma decisão tomada em 1993, após o lançamento do livro ‘Eu’s no Azul do Infinito’ (Editora Universitária – UFPE). Havia iniciado o curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e estava no primeiro ano. Até hoje acho que o meu primeiro livro foi um fracasso de vendas, mas foi muito mais importante do que isso. Foi o meu primeiro grito suave. Desangustiado. Parido.

A Biblioteca Central da UFPE era o meu esconderijo secreto todas as tardes dos dias da semana. Ia nas fichas catalográficas e escolhia o livro que eu ia ler nas bancas de estudo, já que havia me desvinculado do curso de Letras e não podia pegar emprestado, levar para casa. Lembro do livro que mais me chamou a atenção – pode ser até o que mais gostei: ‘Arredores do Recife’, de F. A. Pereira da Costa, um livro que faz um resgate do Recife, do século XVI ao século XX. O autor, por sinal, foi o fundador da Academia Pernambucana de Letras (APL). O que chamo de pesquisa que fiz se estendeu até o Museu da Cidade do Recife, dentro do Forte das Cinco Pontas. Não li João Cabral de Melo Neto, porque sabia que ia ser influenciado. Tenho que admitir. Também estudei Recife e Seus Bairros, Gilberto Ferrez, e um livro sobre a passagem de Charles Darwin pelo Recife, o qual não lembro o nome do título.

No museu, a coleção de fotos, litogravuras seculares, pinturas; é muito vasta. Lá cheguei à conclusão de que o Recife Central sofreu cinco grandes aterros até chegar à área de continente expandido que se apresenta hoje. Outro imoacto foi a destruição de ruas e casarios para a construção da Avenida Guararapes. Uma igreja secular e dois grandes arcos de ruas foran derrubados. No Recife Antigo também havia a igreja mais cultuada do local, voltada para os navegantes que chegavam de viagem e aos que embarcavam. Ficava na beira do cais, próximo ao antigo Terminal de Passageiros. Não existem nem mais as ruínas.

PARCERIA COM LULA CÔRTES – Mas o mais gratificante do que já se tratava de anos é que, ao apresentar todos os poemas para o amigo e parceiro Lula Côrtes, ele pegou da minha mão os originais que eu estava lendo para saber a importante opinião dele sobre o livro, os poemas, e disse: “Eu vou fazer umas ilustrações iradas. Bem diferentes. Deixe comigo”. Meus olhos brilharam, porque estava ali agregado um ser artístico com o qual eu aprendia o tempo inteiro, embora, se descuidasse, desaprendia também. Lula me surpreendeu com dez monotipias (equivalentes a dez poemas que as inspiraram), feitas com desenho de espátulas com nanquim sobre superfície de vidro. Ele desenhava as figuras ao contrário para que quando fosse imprimir, manualmente, num papel que ele mesmo reciclava, a imagem ficasse em positivo. Os resultados eram maravilhosos. E a textura dos desenhos, preto e branco, ficou maravilhosa. Ele me revelou que nunca havia feito essa mistura nem usado essa técnica antes. Não fiquei surpreso.

 

Vamos à arte!

Recife de ruarecife de rua
vagueia um menino qualquer
qualquer rua…
matuta qualquer menino
vidrado na lua…

sobre a cidade
de água indecisa,
sob a verdade
crua e concisa
repousam as asas
da contradição:
do que é da terra de Deus
e que é de um mundo de cão.

um rebanho de bichos do mato
…meninos…
…cidade…mata…
…MENINOS…

 

A lama enrustidaa lama enrustida
atravessar o rio da vida
e a história da vida molhar;
pular de uma ponte comprida
e na lama da vida nadar…

compreender a lama o centro
e no centro da roda rodar;
desvirginar o segredo do tempo
e no vento da vida voar…

mergulhar no canal de entrada
no bueiro da esquina entrar
e ao sair, na bacia do pina,
pelo dique afora andar…

de um forte, o progresso
(referindo-se ao forte das cinco pontas
e ao cais José estelita)

havia um forte
há mais de cem anos atrás
onde um rio e o mar
formavam o cais.
– arrecifes de formas
concretas
não morrem, jamais.
Mas ali onde havia um
mangue,
hoje são plataformas gerais;
e o câncer urbano
propaga-se…
…cada vez muito mais.
assim, bosques indecisos
vagueiam sobre um passado
esquecido.
enquanto a forma arquitetônica
de outrora é substituída pelo caos,
o que agora os homens
chamam indecentemente de progresso.

 

Olhem agora a contracapa do Recifeolhem agora
a contracapa do recife,
aquilo que escondem de ti
sob o arregalo dos teus olhos
assustados com os curumins do “mau”
saídos dos esgotos marisíacos de sal…

 

 

suicídio ao cais
surgia o coletivo
e ele descia.
meio claro chuva,
meio dia.
Absorto entendia
que dobrava uma esquina fria,
até a ponte que subia
a guararapes…
o jornal de ontem,
lia o diário, que esquecia
e atordoado ele seguia…
ele chorava, ele sorria.
cinco minutos
em cada praça
se despedia…
na 1º de março
sem companhia…
prosseguia, ainda,
a marquês de Olinda,
e, jogando-se do cais,
no mar ele morria…
(quantas coisas
o marco zero não presencia…)

Dos manguesdos mangues
eu sou da terra dos mangues,
dos sangues que cobrem nossos contraditórios asfaltos…
dos grupos que exalam o maracatu lá dos altos.

eu sou do lado urbano,
das retas e contornos dos prédios
que presencial ou acabam o tédio
da arquitetura da cara do povo.

eu sou do lado rural,
das árvores seculares e florestas vivas,
das cerâmicas da várzea de francisco brennand.

 

Menina de cais

menina de cais
uma mariposa
de cais,
gás…
aquática
cinemática.
movimentadamente
estática…
uma menina
que vagueia
o cais de zé
mariano, apolo
e santa rita.
presa ao cais
da alfândega
com seios contrabandos,
seu bando:
que bando?
uma prostitutinha
de cabelos de mangue,
uma menina de rua
é a nossa beleza;
brasileira Veneza…

 

Recife, a tua carne

recife: a tua carne
a tua carne é irrigada
pelos canais e rios de lama
além dos arbustos que encobrem
os sóis que refletem a gente.

o teu horizonte incerto é curvo
nas retas esquisitas da tua ilha do leite,
a tua ilha do retiro, joana bezerra,
um tiro nos coelhos
tuas ilhas…armadilhas…
são tuas veias dividindo teu tecido,
tua pele de lama, em tua cama me deito.

teu horizonte correto é reto
tanto quanto também incerto
e tuas águas, inevitavelmente, correm para o mar
nos corrupios esguios das mágoas que não vamos chorar.

teus pássaros turvos
os uivos noturnos
boêmios diurnos
mistérios que me fazem encontrar…

atlântida nem Veneza,
recife beleza,
paraíso infernal.
até o galo sai antes da aurora
na hora do carnaval…

 

Pontes

pontes
pontes, por onde andas?
sei que durante tantos anos
não permanecestes parada…

ponte, por onde falas?
sei que, apesar de muda,
não te resumes calada…

ponte, por onde nadas?
porque, apesar de morar neste rio,
nunca morrestes afogada…

ponte, por onde começas?
ponte, por onde terminas?
eu só sei dos ensinamentos
que tua travessia me ensina.

 

 

satisfação
(a antiga rio branco)

que pressa e risos
de um lado a outro das ruas,
das meninas vestidas
que, na verdade, são nuas.
elas vendem beijos e abraços,
pedaços de noite sem emoção.
anseiam, ao passo que abominam
o cansaço das noites condenadas
à prostituição…
talvez sim, talvez não
alguém possa satisfazer mecânica sua falta
e a sua determinação de se vender infeliz,
numa vibe de que qualquer trocado torna alguém mais feliz…

E ela diz: – levando comigo, freguês, seus segredos e ilusões,
Das quais tua alquimia solitária
Não te traz satisfação,
Levo tanta a maçã quanto o pão!


(Poemas: Cristiano Jerônimo | Ilustrações: Lula Côrtes)

Fonte: Portal Flores no Ar.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Corações sempre alados


As almas que me resgataram

E tantas outras que eu resgatei

Fazem parte da minha essência

São dos propósitos que plantei

Nesta vida, especial e indelével

O rosto da pessoa que é ilegível,

Incógnita para Lévinas decifrar

Esse humanismo da era espacial

E essa ética na mística do dinheiro.

 

Contemplo as estrelas cadentes

Do céu dos meus olhos fechados

Constelações e sóis dentro de mim

Eu vejo quando escuto calado

E escuto quando calo para ver

O essencial está na irrealidade

A matéria é um trampolim alado

A alma é a partida e a chegada

Eu fico me olhando, aqui ao lado

Somos corações com pernas aladas.


 

(Cristiano Jerônimo – 16.06.2025)

domingo, 15 de junho de 2025

Soneto do futuro do pretérito


Porque sou poeta e amo a excentricidade

De umas coisas que a outros não convém

Ando muito a incorrer na hostilidade

Dos mil cretinos que essa cidade tem.

 

Já as mulheres, que pena, e é verdade

Algumas delas detestam-me também

É que dou carinho, mas na realidade

Não enfeito o pandeiro de ninguém.

 

Decerto que não sou nenhum portento

Mas sei que tenho um pouco de talento

E louvo a Deus que altivo assim me fez.

 

Vós, se me odiais por minhas mil venetas,

Deixai-me em paz com minhas costeletas

Meu bigodinho e o meu sorriso tão cortês.

 

 

(Cristiano Jerônimo – 1994)

Fragmentos de um mundo - Asas


Condor deslizando na crista dos Andes

Oceano pacífico nos povos do atlântico

O misticismo dos mistérios dos egípcios

A marca dos povos orientais quânticos.

 

Sioux resistentes até mesmo na extinção

América Central, Haiti, um carma fatal

Um voo raso no espaço daquela direção

O amor dos deuses e nosso amor carnal.

 

A menina foi para o sul procurar vida

O menino é ternamente seco e dócil

Estropiado, no sertão, com uma ferida

Sabe que a árida vida lá não é tão fácil.

 

O fantasma só existiu quando ele viu

Perdeu os Incas, os Maias e Astecas

Foi no que viu e matou o que não era

Nas tabernas medievais, suas canecas.

 

No meio copo, pensa no meio vazio

Sem saber que o outro está lá, cheio

Nunca desperdiça o cio da nossa vida

Transformando em belo o que é feio.

 

Como rochas, as pedras param rápido

O vento mais veloz flutua um pássaro

A planar do alto do pico de uma serra

Impávido como um gavião e seus atos.

 

(Cristiano Jerônimo)

sexta-feira, 13 de junho de 2025

A moça refrigerante



Você com essa cara de Fanta

Laranjada em mim!

Você não é mais uma criança

Já pode ser mais assim...

 

Você com essa flor no cabelo

Jogue teus cachos em mim!

Sem dar paz nem desespero

Mergulhe e você vai entender!

 

Você com essa cara de Soda

Limonada em mim!

A água gaseificada,

Para podermos beber no jardim.

 

Você com essa cara de Coca

Vê se molha e me enxugo enfim

Guarda um gole de Coca pra mim!

 

Quando for Guaraná

Vem com esse teu doce

Vira uma abelha

De um mel sem fim.

 

Você com essa flor no cabelo

Jogue teus cachos em mim!

Sem dar paz nem desespero

Mergulhe e você vai entender!

 

 

(Cristiano Jerônimo – 13.06.2025)

quarta-feira, 11 de junho de 2025

No mais


 

Não é o destino

inconteste

inconstante

mutatis

mutantes

a vida

muda

a todo

instante

invariável

prazer

prisão

coração

bomba

irrigando

emoção

quatro

cantos

igrejas

santos

procissão

velas

no escuro

derretem

apagam

escuridão

procura

em vão

não

é

destino.

No mais,

perdão.

 

 

(Cristiano Jerônimo – 11.06.2025)


Analina


Analina bailarina

era só uma menina

viciada em Ritalina.

Ana linda sem sina;

mergulhando na maré

remando pelos rios

podres, o beberibe,

intocável capibaribe.

 

Analina baila no mangue

entre tantas barcaças

da vida deste rio morto

no Cais da Aurora

e nos Coelhos...

... catamarãs

só mostram

os belos pontos

e os palácios do poder.

 

Já Analina rebola no píer

Segura a corrente

do navio e quer zarpar...

quer atravessar o oceano

dar um salto no engano

e transpor a angústia de pular.

 

Analina tem um cavalo

campolina. Loura crina

que segura esta menina

e lhe coloca a galopar.

Seu galope é certeiro,

cai nos braços do vaqueiro

e vai ao mato aboiar...



(Cristiano Jerônimo – 14.10.1999)

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Os pássaros não choram


De tanto andar à toa nesta estreita estrada

Assumi um cheiro de bode, de uma boiada

Esse bioma, na verdade, é o que mais tenho

Quando preparo as sementes na terra arada

Sou um boiadeiro nas alpercatas do bisavô

Sou um homem do mato, na enorme criação

Sou um homem modesto e sou um doutor

As letras que falam e ouvem o meu coração

As linhas que tenho do infinito até o luar

Cerca morta, cerca viva, porteiras aladas

O cavalo do meu pai é mais feliz que todos

O gato e o cachorro do terreiro vivem a rir

São os cantos dos pássaros mais bonitos

Que não discutem se são pobres ou ricos

Que vivem tranqüilos sem nunca chorar

Flores amistosas que nascem no inverno

Esperam a seca das secas da seca passar

E enfeitam o cabelo e os olhos de Maria

De tanto assoviar à toa nesta estrada fria

E muito caminhar no mormaço do Sertão

Foi que eu vi o trabalho da abelha e o mel

Vi os lagartos das outras eras ancestrais

As cobras que não mordem, vivem em paz

O perfume do cheiro de chuva no curral

Simples, seres que fazem o bem, não mal

Fui mais um inocente numa tola capital

Onde vi tanto indigente nas marquises

Sonhos vivos e espalhada a maluquice

De tudo aquilo que no fundo é normal

Mas gera caos, numa sensação de crise.

 

 

(Cristiano Jerônimo – 09.06.2025)




A CANCELA QUE PRENDE É A MESMA QUE LIBERTA



Tem pessoas que pintam à noite

Outras que optam mais pelo dia

Eu, ainda derrubo a madrugada

de uma cajadada só.

E acordo noutro dia vendo melhor.

 

Por que ela só pinta à noite e corre...

Durante o dia inteiro, me faz esperar.

 

Clareio a noite em fogo e luzes de paixão.

Tem gente que amanhece o dia todo dia,

como antigamente...

Sinceramente, eu não sei para onde vão.

A minha esbórnia se foi e nem me interessa...

Agora olho por streamings os seriados

A falta da vida que a morte traz e não presta.

 

Tem gente que pinta toda a hora do dia

e com o mesmo prazer nos acolhe assim.

Uma vez que ninguém é obrigado a brilhar,

Nenhuma luz também é capaz de ofuscar...

 

Esperei a morena passageira,

                                               tão metida e brejeira.

Quase eu ia acreditar...

                       Foi ela quem abriu essa porteira.

A cancela onde soltei meu coração para voar.

 

 

 (Cristiano Jerônimo )

terça-feira, 3 de junho de 2025

A mente e a alma da praia e do mar

 




Uma mulher que corre na praia menina

traz o azul verde do mar no seu rosto

além da suave cor, a alma tão vasta

como são as cores dos arrecifes de corais.

 

Ela traz poemas nos olhos e no coração

Após a fala, ela quando para ouvir o mar

como se o oceano nunca tivesse um final;

sonhos enchem e secam com as emoções.

 

Quantas fostes no mesmo trecho de areia

Que separa o teu continente do teu mar

Caminhando em vários ritmos compassos

Da praia onde fostes feliz e triste também.

 

Pois tu és o oceano de ti mesma nos olhos

Tão grande compaixão da tua alma que sai

Para abarcar as conchas; os seres humanos

Penso que caminhas cada vez muito mais...

 

 

(Cristiano Jerônimo – 03.06.2025)

Cristiano e Lula Côrtes: poesia plástica

Lula Côrtes e Cristiano Jerônimo pintando a poesia Cristiano Jerônimo é poeta, compositor e jornalista   No aniversário de cinco anos do Flo...